Carta aberta, de um informal cuidador a um cuidador informal*

* Recebida hoje por e-mail


Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, António Costa


Não refiro Doutor ou Dr. na titulação — como tantos farão quando a si se dirigem, certamente, embora não haja Doutoramentos em Primeiro-Ministerialismo, ou se seja Doutor sem se ser Doutor em algo concreto – porque, e à semelhança de tantos outros cuidadores informais, o Sr. Primeiro-Ministro só é Sr. neste caso. E neste caso um Sr. com responsabilidades específicas, mas Sr. Não há formação em cuidadores informais. Só a informal consideração de que se cuida, umas vezes sabendo-se, outras tentando-se o melhor possível. Sr., somente e sem desrespeito.

O Sr., que vem cuidando informalmente deste país desde 2015 e como tantos outros cuidadores informais, recorre, por vezes, à casualidade para aferir o seu dia-a-dia e a argumentação que necessita de apresentar a terceiros. Sempre com respeito, embora por vezes, também, agreste.

Reconhece-se que o ser agreste na argumentação, por vezes, é apenas porque, à semelhança de tantos cuidadores informais, o cansaço se sobrepõe à lide ou lides necessárias. Chama-se-lhe cansaço. Por vezes, só por vezes, alguém afirma ser exaustão. E dizem aos cuidadores informais: isso está mau; estás com um ar cansado; ou, estás com péssimo ar. O Sr. vai conseguindo disfarçar o cansaço. Persevere nesse aspecto, por favor; que seguiremos o exemplo, tendo as condições para tal.

Frequentemente não se sabe quem cuida, menos ainda quem cuida informalmente de alguém. Alguém que formalmente requer, necessita, depende, de um apoio formalizado em documento e em atenção. Cuidados, no fundo. Em que alguém requer, sem de facto algum dia ter desejado – imagino, embora não possa falar por outros – ser beneficiário de cuidado documentalmente atestado.

Quando, por vezes, o Sr. discute com os seus parceiros de solução governativa sustentada por via de uma maioria de incidência parlamentar, recordo-me das famílias que, por vezes, debatem as questões de cuidar informalmente de quem formalmente necessita de cuidado. E debatem e discutem e batem com portas – talvez – por vezes. E, por vezes até se esquece o cuidador de vestir calças de vinco para ir trabalhar. Esquece-se e engana-se e veste outras quaisquer. Vai de ganga quando devia fazer diferente. Ninguém leva a mal, não muito; mas acontece.


Imagem do Finta 2017, Acert
(daqui)
Sabe, claro que sabe, mas, sabe, Sr. Primeiro-Ministro, por vezes, muitas vezes, chega a um ponto em que se escolhe – imagine! – nem sequer trabalhar para cuidar. E não porque se não queira, antes porque o tempo necessário à escolha das calças com vinco e vincar as calças antes disso, é tempo que deverá ser ocupado a cuidar (ou a cuidar de quem cuida, que é cuidar de si um pouco). Nem sempre se age assim. Nem sempre se escolhe assim. Claro. E ainda bem. No entanto, e por vezes, não se pode conciliar cuidar. Ou se cuida ou não se cuida. E há quem cuide e não escolha mais…

Mas sabe – talvez não saiba – que chega a um ponto que é um momento só que é apesar de tudo um cumular de momentos e pontos; em que se escolhe. E um a cuidado, torna-se dois a cuidado. Ou mais. Por vezes mais, numa estranha osmose em que há sempre quem cuide e quem cuidado seja.

Mas a escolha, e isto sabe certamente, sem dúvida ou questão, só é [escolha] quando há opção. E o Sr. sendo cuidador informal deste país afirmando uma opção ao país de que cuida, defendeu uma opção. Uma diferença. Um outro modo de cuidar do país. O Sr. é um cuidador informal que escolheu e agiu perante a escolha. E, vá lá, até pôde ser considerado cuidador informal do país. Documentalmente considerado enquanto tal. Não lhe chamaram isso mas é-o mesmo. Ninguém precisa que configurem uma profissão, apenas o reconhecimento da função… (soou fria e calculista esta parte não foi?)

Como qualquer outro cuidador informal, o Sr. protestou, argumentou, agendou, reuniu e sublevou a interpretação das regras pré-estabelecidas. O Sr. é um dos heróis dos cuidadores informais. Ou de alguns. Talvez. Por vezes. E por ter feito assim e tudo isso, conseguiu que lhe reconhecessem a função que exerce. Tente o Sr., se não sendo Doutor ou Primeiro-Ministro, agendar, reunir e sublevar a interpretação das regras pré-estabelecidas. Considere, por favor, e para efeitos da presente, que argumentar, e até protestar se necessário, todos os restantes cuidadores informais fazem… para melhor cuidarem; e também, por vezes, por cuidarem.

Considere por favor, que nem todos insultam antes de se exasperarem com o tempo e dinâmicas de serviços públicos ou publicamente financiados, pesados, em que os cuidadores informais se vêem para aqueles de quem cuidam; por aqueles de quem cuidam. Pedidos, documentos, acesso à informação.

E tempo e vida que a momentos seja só sua, de quem cuida, e de mais ninguém. Imagine – voltando à analogia das calças – poder escolher casualmente vestir um par de ganga, só porque se quer aquela ganga e não outra. Imagine o privilégio de poder escolher. Imagine o privilégio de poder ser. Pessoa. Também.

E ser pessoa sem deixar de cuidar mas sem, igualmente deixar-se, a si mesmo/mesma, sem cuidado. E tudo assim, para os cuidadores informais, mesmo antes de o serem mas após cuidarem com toda a força e forma de um querer para outro, para outrem. Claro que há nisto nepotismo e afins. Claro que os cuidadores informais querem mais para os seus que para os outros. É a vida, caro Sr., a vida dar a alguns filhos e pais e aos outros pais e filhos. Por vezes, também, primos, sobrinhos, netos, tios e até familiares mais distantes ou, até mesmo, só amigos. E sabe – eu não sei - como escolheriam se pudessem escolher, convictos de que o cuidado existiria sempre nos termos e condições que é necessário que haja para que o cuidador e o cuidado, estejam igualmente bem? Não óptimos; não imagino que se peça um ideal de nada. Apenas bem. Duas pessoas (e as restantes que os envolvem – quando existe este envolvimento) podendo ser pessoas. Podendo Ser.

Imagino sempre os conselhos de segurança antes de um avião levantar voo: a primeira máscara de oxigénio, em caso de catástrofe, não se coloca a quem cuidado requer, antes ao cuidador. E sabe porquê [claro que sabe]? Porque sem cuidador não há cuidado para milhares de pessoas neste país e nos outros países e sabe-se lá em quantos outros locais onde haja necessidade de cuidado para que se Seja. No fim do dia é só isso. Luta-se e desespera-se para que se Seja.

O Sr., que é Primeiro-Ministro, mas antes de tal, um cuidador informal do país que governa desde 2015, tenha em atenção, por favor, que um qualquer outro cuidador informal, não pede salário como o seu. Pede espaço e dignidade para que se Seja; para todo e qualquer cidadão deste país. Todo e qualquer um. Quer não necessite de cuidar e ser cuidado; quer necessite de cuidado e/ou cuidar… Alguém refere que isso é inclusão. Pois bem, inclua, mas sobretudo, não exclua.


Atenciosamente,
um informal cuidador

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