sexta-feira, 31 de março de 2023

Precipício

Fotografia Olho de Gato


As imagens gastas de tão lidas
e os sofisticados lugares comuns da poesia
colam-se-te à pele – pelo incómodo trajo do bom senso
e do bom gosto que repudias.
Vil chegada do que amaste, e que agora recordas.

A poesia faz-se contra o esquecimento?
Melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia.

Sem a arruinada ponte não há precipício?
O que conta é o precipício além da arruinada ponte.
Luís Quintais


quinta-feira, 30 de março de 2023

Mozart é um gajo do caneco

Retrato de Mozart aos 13 anos
Imagem daqui


Resposta urgentemente enviada ao poeta Rui Knopfli que numa carta me pedia: «Por favor, mande-me dizer na volta do correio se Mozart ainda é o maior.»


Rui: assim pego na pena e célere respondo.
Mozart é o maior; Mozart é bestial;
é um fruto afiado; é um gume redondo;
é um sentir-nos bem de nos sentirmos mal
(desculpa, Luís Vaz); é o preto no branco;
é os pontos nos ii; é não só mas também;
é advérbio e verbo; mentiroso e franco;
é o cá e o lá; o mil de humilde; o cem e o sem;
é nuvem perfurada; um gajo do caneco;
é um sentir-nos mal de nos sentirmos bem
(previ a reacção); é o ar do pneu do eco;
é um furúnculo na lama; é a calma do furúnculo;
é um parking lot no trânsito do peito;
é lupa, macroscópio, estetiscópio; é um colos-
sal buraco muito alto; é despeito desfeito;
é o que tinge o vinho; o som do fim do saco;
é puro génio; é um tipo com jeito;
boletim misteriológico do meu taco a taco;
– e numa carta breve continuarei dest’arte,
se a tanto me ajudar o Amadeus Mozarte.
José Sesinando


terça-feira, 28 de março de 2023

Uma Europa pós-nacional*

* Texto publicado no Jornal do Centro há exactamente dez anos, em 28 de Março de 2013


1. O trabalho de Angela Merkel é tratar dos interesses dos alemães respeitando a constituição alemã. Quanto mais o dr. Soares disser mal da “senhora Merkel” (é assim que ele a chama), melhor ela estará a fazer o seu trabalho. A chanceler alemã não tem feito mais do que o seu dever.   

2. Isolado, nenhum país europeu tem a escala dos Estados Unidos, da China, da Rússia, da Índia, do Brasil, da Indonésia. Em 2025, nem tão pouco a Alemanha terá assento no G8. Já a União Europeia é o maior bloco económico do mundo e tem uma moeda que, apesar de tudo, se mantém forte e confiável nos mercados.     

3. Os problemas da globalização não podem ser resolvidos à escala nacional. As lavandarias cipriotas põem em risco poupanças inglesas, o ladrilho espanhol abana bancos alemães, um ataque da Al-Qaeda na Argélia torna os nossos banhos mais caros.

4. Daniel Cohn-Bendit e Guy Verhofstadt, no seu recente “Manifesto por uma Revolução Pós-Nacional na Europa”, defendem que as eleições para o parlamento europeu de 2014 devem ser constituintes, devem ser fornecedoras de legitimidade para a redacção de uma constituição europeia que rompa com a eurocracia e permita um governo europeu.   

5. A “Europa” precisa de um governo europeu democrático, eleito directamente pelos europeus, e que responda perante eles como Angela Merkel responde perante os alemães. Se for para isso, valerá a pena eleger deputados europeus em 2014. Se for para dar umas veniagas a “Correias-de-Campos” fora do prazo de validade, não vale a pena.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Estou só, nas zonas das metáforas

Fotografia Olho de Gato

Estou só, nas zonas das metáforas

(que é todo o pensamento),

em nenhum resíduo nada exprimo

(mas sempre metaforizo).

Não sinto a solidão total

dos poemas, talvez grutas,

o mar quieto, nem silêncio.

Apenas espero o outro,

um amor esplêndido,

alheio e desejável.

Fiama Hasse Pais Brandão


domingo, 26 de março de 2023

sábado, 25 de março de 2023

Cadê ele?*

* No Jornal do Centro aqui


Depois de anos e anos de promessas políticas nunca cumpridas, vão finalmente abrir as novas urgências do Hospital de Viseu, com instalações remodeladas e ampliadas, capazes de dar resposta a 400 doentes por dia, o que, pelo menos para já, dá alguma folga, já que a afluência média tem sido de 250.

As novas urgências abrem tarde, muito tarde. Mas, já se sabe, vale mais tarde do que nunca. 

Esta coluna não se esquece de que, há seis anos, em 2017, o governo pôs a concurso estas muito esperadas obras de ampliação já com financiamento europeu assegurado, mas o ministro Mário Centeno preferiu cativar a ninharia de um milhão de euros da comparticipação nacional e a obra não avançou. Ninharia, sim: como na altura fiz notar aqui, no Olho de Gato, só em aluguer de tendas para a WebSummit, Lisboa gastava cinco vezes isso por ano.

As novas urgências abrem tarde, muito tarde. Durante anos e anos, houve muito sofrimento desnecessário de doentes e profissionais numas instalações cada vez mais degradadas. Mas, já se sabe, vale mais tarde do que nunca. Chega ao fim esta longa luta dos viseenses, luta com muitos episódios, de que recordo uma manifestação, em Janeiro de 2020, organizada pela Liga de Amigos e Voluntariado do Centro Hospitalar Tondela Viseu e onde discursou o malogrado António Almeida Henriques

Para além da manif, houve também uma petição pública com milhares de assinaturas a reivindicar duas obras: esta ampliação das Urgências e a construção do Centro Oncológico de Viseu.

Resolvida a primeira, há que perguntar agora pelas segunda: cadê o Centro Oncológico? Cadê? 

É bom refrescarmos a memória: o Centro Oncológico de Viseu foi-nos prometido num acto oficial, em 2017, no Hospital de S. Teotónio. O então secretário de estado da saúde, Manuel Delgado, ao lado de vários VIPs locais e em cima de um estrado vermelho, ...

Viseu, 6 de Maio de 2017
Fotografia Jornal do Centro (editada)

... jurou, a eles e a nós, que aquela obra ia avançar. Naquele cerimonioso dia, até foi lá prantada uma placa com este peremptório dizer: “Aqui vai ser instalado o Centro Oncológico”.

Passaram seis longos anos. Cadê ele? A placa ainda é capaz de lá estar. Mas mais nada. Niente. Nothing. Nichts. Rien.

Excelentíssimo senhor ministro Manuel Pizarro, ontem já era tarde para o Centro Oncológico de Viseu.


sexta-feira, 24 de março de 2023

Recado

Fotografia Olho de Gato


ouve-me

que o dia te seja limpo e

a cada esquina de luz possas recolher

alimento suficiente para a tua morte


vai até onde ninguém te possa falar

ou reconhecer — vai por esse campo

de crateras extintas — vai por essa porta

de água tão vasta quanto a noite


deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te

e as loucas aveias que o ácido enferrujou

erguerem-se na vertigem do voo — deixa

que o outono traga os pássaros e as abelhas

para pernoitarem na doçura

do teu breve coração — ouve-me


que o dia te seja limpo

e para lá da pele constrói o arco de sal

a morada eterna — o mar por onde fugirá

o etéreo visitante desta noite


não esqueças o navio carregado de lumes

de desejos em poeira — não esqueças o ouro

o marfim — os sessenta comprimidos letais

ao pequeno-almoço

Al Berto









quinta-feira, 23 de março de 2023

E o meu coração já não bate


E o meu coração já não bate
na minha voz, de alegria e tristeza.
Acabou... E o meu canto galopa
para a noite vazia, onde tu já não estás.
Anna Akhmátova
Trad.: Manuel de Seabra


quarta-feira, 22 de março de 2023

Xota de Lira




Esta que teño ao meu lado
Cante moito ou cante pouco
Ai cante moito ou cante pouco

Esta que teño ao meu lado
Canta moi ben arreghlado
Ai canta moi ben arreghlado

Alí vai a que canta
Reghalando coa súa gharghanta
Bota flores, bota flores
Todos queren sel-os seus amores

Toco para miña irmanhe
Toco para miña irmanhe
AI toco para miña irmanhe

Para outra non lle toco
Anque me paghen na mane
Ai anque me paghen na mane

Alí vai a que canta
Reghalando coa súa gharghanta
Bota flores, bota flores
Todos queren sel-os seus amores

Coleaivos coleaivos
Cintiñas do meu sombreiro
Ai cintiñas do meu sombreiro

Coleaivos coleaivos
A conta do meu diñeiro
Ai a conta do meu diñeiro

Alí vai a que canta
Reghalando coa súa gharghanta
Bota flores, bota flores
Todos queren sel-os seus amores

Baila nena baila nena
E non pares de bailar
Ai e non pares de bailar

Que as estrelas tamén bailan
Sen deixar de alumear
Ai sen deixar de alumear

Alí vai a que canta
Reghalando coa súa gharghanta
Bota flores, bota flores
Todos queren sel-os seus amores

Vou a dá-la despedida
E na despedida un ramo
Ai e na despedida un ramo

E no ramo un papeliño
Con letras d'ouro bordado
Ai con letras d'ouro bordado

Alí vai a que canta
Reghalando coa súa gharghanta
Bota flores, bota flores
Todos queren sel-os seus amores

Alí vai a que canta
Reghalando coa súa gharghanta
Bota flores, bota flores
Todos queren sel-os seus amores



E na recolha do grande Tiago Pereira em 

terça-feira, 21 de março de 2023

Barroso*

* Texto publicado no Jornal do Centro há exactamente dez anos, em 21 de março de 2013


1. Foi há dez anos, em 16 de Março de 2003, que Bush, Blair, Aznar e Barroso fizeram a Cimeira das Lajes. Três dias depois começou a guerra do Iraque, um erro estratégico que tirou força ao ocidente, um erro moral que devia levar o sr. Blair e o sr. Bush ao banco dos réus.

Dos quatro figurões das Lajes, já só Barroso é que está no activo. Aquele dia foi uma tragédia para o mundo mas foi um jackpot para ele que, a seguir, foi colocado por Tony Blair (essa nefasta criatura) a presidir à “Europa”.

Já se pode fazer um balanço da qualidade do trabalho de Durão Barroso em Bruxelas: com ele, as instituições comunitárias apagaram-se e os estados grandes aproveitaram aquele apagamento para prevaleceram sobre os pequenos. Isto é: a União Europeia andou para trás.

Ultimamente, Durão Barroso tem falado muito de Portugal e isso é sinal que o servidor de cafés nas Lajes quer ir viver para o Palácio de Belém em 2016 (isto se Cavaco não resignar antes). Ora, Barroso foi um mau primeiro-ministro, é um mau presidente da “Europa” e será um mau presidente da república.

Para que tal não aconteça, era bom que a esquerda não desse os mesmos tiros nos pés que deu com o alegrismo, essa invenção de Carlos César e Francisco Louçã que valeu menos de 20% dos votos.


2. O recente “Manifesto pela Democratização do Regime” merece leitura atenta. Propõe primárias abertas nos partidos para todos os cargos políticos, votações em nomes e não em listas e transparência nos dinheiros das campanhas.

Entre os cinco autores do texto, um homem pouco conhecido mas admirável: Ventura Leite, ex-deputado socialista, afastado em 2009 pelo socratismo por causa das suas posições anti-corrupção.

Este manifesto foi muito mediatizado mas é estéril: os actuais cinco partidos só mexem a sério neste pântano político quando virem o eleitorado a fugir para partidos novos.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada pelas vozes


Fotografia Olho de Gato

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada
pelas vozes.
E enquanto dorme o leite, a minha casa
pousa no silêncio e arde pouco a pouco.
No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -
e as palavras nascem.
— Límpidas e amargas.



Eis um tempo que começa: este é o tempo.
E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas,
é o pensamento que verga de flores actuais e frias.
A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro.
E as estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado
de seivas, para a noite que estremece
fundamente.

Melancolia com sua forma severa e arguta,
com maçãs dobradas à sombra do rubor.
Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando
com a primeira música de água.
Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído,
com esta coroa recente de ideias, esta mão
que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa
onde o coração se consome devagar.

Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras
antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera
de minúsculas folhas eternas como uma árvore.
Degrau a degrau devorei a alegria —
eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas
desvairadas, entre jarros transbordando
húmidos astros.

Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer
com os olhos queimados pelo poder da lua.
Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe
procuro no meu silêncio uma outra forma
dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é
a casa ligeira colocada num espaço
de profundo fogo.
E apagaram-se as luzes.

— Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente
para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, de grau a degrau, a escadaria daquele corpo.
E não chames mais por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite.

É primavera. Arde além rodeada pelo sal,
por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.
Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu.
Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. — É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.
Herberto Helder