o predador de sombras

 

João Morais, Cláudia R. Sampaio e José Anjos
Ronda Leiria Poetry Festival, 21.3.2021



também eu já pari novos planetas

tenho-os escondidos no ventre que ninguém vê

nem eu

mas quando mergulho no mar

deixo sempre os olhos abertos e por vezes

vejo alforrecas cintilantes

que me mostram a língua

libidinosas


só a mim é que a libido vem em alforreca

e o prazer é um choco que

me enche de tinta quando espasma


a gata à janela ri-se mais uma vez

mas eu não

a minha cara anda a cuspir em tudo

deixem-na estar

a minha cara é que sabe

a cara é à parte do corpo

a cara tem um manifesto em que

explica as expressões a usar

em cada ocasião

a cara às vezes comunica com

o resto do corpo e por exemplo hoje

comunica com o meu pé que

está verde e chora pelas

sapatilhas de ballet


nunca fui uma grande bailarina

e nem sei o que alguma vez fui

agora sou apenas este corpo

sentado numa manta de padrão de zebra

e com um cheiro a laranja que

não me sai dos dedos


tu também não me sais dos dedos

agarras-te à laranja e formas um pomar


um pomar feito de ti, quem diria

pensava que só servias para me lembrares

da pequenez das minhas palavras


um pomar. TU.


deleitemo-nos então em volta dos vários

pomares de TUS que por aí existem


e eu que nem uma laranja sou,

se fosse algo, seria apenas um figo seco

em embalagem fora de prazo,

a contemplar o ventre cheio de planetas

e a sonhar com o dia de aterragem

mas os figos não aterram

deixam-se estar a ser figos eternamente

vivem a secar


VIVAM OS FIGOS SECOS

VIVA EU SENTADA NESTA MANTA DE PADRÃO DE ZEBRA


e cheiro os dedos mais uma vez

cinco pomares estrelados

édens feitos de TUS, feitos de eus,

feitos de nós,

feitos de zeros mais zeros mais zeros

infinitos zeros que me arrancam as sílabas

que me arrancam as horas a que tinha de

fechar a janela por causa de um espasmo

solar

as horas a que tinha de fechar os livros

vão continuar abertos, sempre as

mesmas páginas amareladas com cheiro a vida

porque a vida é nos livros


cá fora há nada elevado ao extremo

apesar de não sabermos, mas desconfiarmos


a ânsia expande-se de boca em boca

disfarçada de rotina

e eu cuspo em todos os que se dizem felizes

cuspo em TODOS ao infinito

infinitamente elevado ao cubo,

ao quadrado, ao infinito

não tenho vergonha!

a minha cara de hoje é snob


VIVAM OS SNOBS!


Tus, tus, tus, e já somos tambores.

Rufemo-nos então em

melodias compassadas


trrru tu tu

trrru tu tu

trrru tu tu

trrru tu tu

trrru tu tu


aí vem o rebanho disfarçado de gente

aí vem o mundo em todo o seu esplendor

clamoroso, ardente de sugar tus, tus, tus

de nos mandar para o Espaço

nós, nós, nós

de onde viemos todos



e tu, meu pomar meu tambor

meu figo único que nunca seca

vieste lamber-me os dedos

vieste premir o gatilho

e entre nós, para sempre,

a diferença

Cláudia R. Sampaio



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