Noite de Natal *
Fotografia Olho de Gato |
Não fazia outra coisa que não fosse cismar na sua filha. A filha que o fez dar no duro nas obras da Visabeira. Tanto trabalho, tantas privações, tudo para ela tirar um curso.
Foi uma alegria quando ela se formou. Ele tinha uma filha doutora! Até pagou uma rodada de cervejas aos colegas da obra.
Depois veio a desilusão. Durante um ano, ela só conseguiu arranjar um part-time num call-center e uns meses numa caixa do Intermarché, em substituição de uma grávida.
Finalmente, apareceu uma luz ao fundo do túnel, uma vaga para um lugar bem pago, onde ela podia aplicar aquilo para que tinha estudado. Só que era em Sydney, na Austrália. Que neura!
«Pai», dizia ela, «a gente fala todos os dias na internet. Aquilo é tão bonito. Olhe esta fotografia da ópera de Sydney.»
Já não faltava muito para a consoada. Ia ele, naquele dia frio, naquela rua onde tinham posto uma alcatifa, naquela rua aberta aos ventos de Espanha, a fugir daqueles jinglebéles nos altifalantes, que atroavam o ar. Ele ia a cismar. Nem deu conta que estava a pensar em voz alta:
«Merda de país! Forma doutores para os pôr nas caixas dos supermercados…»
Rua fora, ao fundo, viu a praça, o Rossio, as casinhas do Rossio.
Fotografia Olho de Gato |
Estava lindo o Rossio, de presépio e de charrete, luzes de Natal a pingarem das tílias, táxis à espera, brasileiros ao telemóvel, ucranianos de camisa aberta, africanos de gorro na cabeça.
Não lhe passou a neura. Em cada uma daquelas caras, em cada um daqueles estrangeiros, em cada um daqueles olhos tristes, ele via a sua filha, sozinha, num Rossio qualquer de Sydney, do outro lado do mundo.
Chegou a casa e disse:
«Filha, nesta noite de Natal tens que me ensinar a mexer no computador…»
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