Pestilência*

* Hoje no Jornal do Centro



“Haviam os anos da frutífera Encarnação do Filho de Deus chegado ao número de 1348 quando à egrégia cidade de Florença, nobilíssima mais do que todas as cidades de Itália, chegou a mortífera pestilência. (...) 
Quis a desgraça que ela se estendesse até ao Ocidente alguns anos depois de haver começado nas regiões orientais, roubando um incontável número de vidas e, sem detença, alastrando-se de terra para terra.”
Decameron”, Giovanni Boccaccio

Chegados ao bissexto ano de 2020, nada impediu que a “mortífera pestilência”, depois de “haver começado nas regiões orientais”, chegasse às egrégias cidades de Itália, e fosse “sem detença, alastrando-se de terra para terra”, de país para país, “roubando” um contado “número de vidas”, infectando ricos e pobres, chefes e chefiados, xenófobos e cosmopolitas, estúpidos e espertos.

O nosso “viver habitualmente” foi-se. Enquanto tentamos que vire rotina toda esta desrotina (mantém-a-distância!, lava-as-mãos!, não-toques-na-cara!, desinfecta-te!, desinfecta!), partilhamos nas redes sociais memes e vídeos cheios de rolos de papel higiénico. Porque rir exorciza o medo.




No Decameron, para fugirem à peste, sete donzelas e três jovens amigos levaram para o seu refúgio, longe da cidade, tudo o necessário (na altura, também um exército de criados) para passarem dez dias a contarem histórias uns aos outros, umas pícaras, outras solenes, outras lúbricas, outras hilariantes. Dez contadores, dez dias, cem magníficas novelas.


Agora, seis séculos e meio depois, podemos e devemos confinar-nos nas nossas casas. Agora já não são só os aristocratas que têm criados, nós também temos: as máquinas que nos aspiram os tapetes, nos bimbam o almoço, nos lavam a roupa.

Agora, sem sairmos das nossas casas, podemos contar histórias uns aos outros, ler Boccaccio, ou ver, nos nossos ecrãs, as nove divertidas histórias que, em 1971, Pier Paolo Pasolini seleccionou para o seu deslumbrante filme Decameron.

Esta peste há-de passar.

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