Os Deuses vendem quanto dão Luz-Gládio/Marte, Orfeu — [POLITÉCNICO DE VISEU 40 ANOS #16]

Fotografia Olho de Gato

Luís Miguel Cardoso
[Viseu, 1969]
Estudou e viveu em Viseu até aos seus estudos superiores
Docente na Escola Superior de Educação
Instituto Superior Politécnico de Viseu


I

Sibilina Vénus, secular, vieste,
Gotícula etérea de azul celeste,
Translúcida espiral,
Esperança boreal,
Espírito, memória,
Hermínio, história.

Em marulho, o segredo amado:
Sombra vaga - luar ornado,
Grão, de areia futura,
Tempo renascido,
Pórtico fendido,
Milenar alvura.

D'apolínea sede, vitral de luz,
Desceu o arcanjo - o olhar o conduz.
Marte, o ungido,
Gládio erguido,
Missão: cruz.

Brame, branco, o deus belicoso,
Flama em sol, olhar furioso.
De Vénus, as sombras funestas,
Afastou, cerúleo, em pugnas e gestas.
O gládio venceu venturoso.

Nascitura, escrita, do céu, a certeza.
Em monte luzia, a azul beleza:
Gládio-sol e Lua acesa!

II

Mas os Deuses vendem quanto dão.
Esvai-se a Luz: estipêndio atroz.
Risos negros de satisfação
De espectros-sombra em muda voz.

III

Gládio partido,
Estilhaço ferido,
Tempo que morre,
Sonho que escorre.

IV

E Marte fez-se Orfeu.
Carpe Vénus, o sol fendeu
Com raiva à terra, dor sem céu.
Jurou ser Homem, deus só seu.
E rasgou do ser a nova entranha,
Queimou ambrósia em seca lenha,
Verteu no templo o sangue ganho,
E gritou rebelde e estranho:
"Juro vingar o tempo vendido,
A morte da areia, o pórtico fendido,
O horizonte azul, o doce olhar,
Os dois em um, o céu em mar!
Eu canto, telúrico fiel,
Icário humano, palavra em asa,
Sem medo estígio, doçura de fel,
De Sisifo, o castigo, de Ulisses a casa.
Os Deuses vendem quanto dão,
Mas o meu destino serei eu!
Retalho de mim, buscarei união
Do sonho ao futuro, o sangue que é meu.
Nasci de mim mesmo, Homem!
Dos ombros nascem asas
E sombras aduncas se somem.
No estertor vivo, a pele se rompe.
Serei Faetonte, Titã e Narciso,
Serei Ómega e Alfa, deserto e fonte,
Serei Édipo, de olhos vazados,
E cego, terei olhar preciso,
Além dos Deuses já passados.
Depois do Tempo, agora sem Tempo,
Depois da Luz, agora sem Luz,
Buscarei, noutra vida, o vento.
O vento me levará, teu olhar o conduz.

Espírito em espiral, de novo me fito.
Sou eu, de novo, mortal, mas infinito."



Poetas e pintores e Viseu
Edição Politécnico de Viseu, 2001




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