Desopilar o fígado *

* Publicado no Jornal do Centro há exactamente dez anos, em 15 de junho de 2012


1. “Cosmopolis”, o último filme de David Cronenberg, é feito a partir de um livro de 2003, de Don DeLillo, livro profético na antevisão dos sarilhos que o capital financeiro ia criar ao mundo.   

“Cosmopolis” conta a história de Eric Packer, um senhor de Wall Street, que usa a sua limousine para tudo — reuniões, encontros sexuais, até para o seu check-up médico diário em que fica a saber que tem a próstata assimétrica. O assimétrico Packer usa algoritmos simétricos para prever a cotação do yuan, a coisa vai correr mal. A unidade monetária podia ser ratos como é lembrado várias vezes no filme, para o efeito era a mesma coisa — ele, o senhor do universo, quer-se perder. Ele, o senhor do universo, já não adrenalina de petite-mort em petite-mort — nem com a madureza sexy de Juliette Binoche —, o senhor do universo quer a adrenalina do seu fim.   

Cronenberg, depois de filmes sobre as cicatrizes do corpo como “Crash” ou “A Mosca”, agora olha para as feridas da alma: foi assim com o seu freudiano “Um Método Perigoso”, é-o com este “Cosmopolis”.


2. Numa cena muito divertida do filme, enquanto flasham as máquinas dos fotógrafos, é espetada uma tarte na cara de Eric Packer. Por coincidência, uns dias depois da rodagem desta cena, alguém meteu “uma tarte na tromba” do magnata dos media Rupert Murdoch (o entre-aspas é o título da última crónica de Clara Ferreira Alves no Expresso).

E se, como em Portugal os tribunais não funcionam para os poderosos, acontecesse a justiça mínima de “uma tarte na tromba” das criaturas responsáveis pela ladroagem no BPN ou nas parcerias-prejuízos-públicos-proveitos-privados? "Uma tarte na tromba” bem documentada em filme e em fotografia?   

Já se sabe: isso não reparava o roubo de futuro feito aos nossos filhos e aos nossos netos, mas, ao menos, dava para desopilar o fígado.

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