A ANAMP, a primavera árabe

* No Jornal do Centro — aqui

1. A câmara do Porto acaba de abandonar a Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) e há pelo menos mais cinco presidentes de câmara que podem seguir o exemplo de Rui Moreira: Trofa (PSD/CDS), Póvoa de Varzim (PSD), Vale de Cambra (CDS), Pinhel (PSD) e Coimbra (independente).

Está em causa a transferência de competências, em vinte áreas, da administração central para o poder local. Dezassete dossiers já estão consumados, há contencioso ainda em três: educação, saúde e acção social. Basicamente, é passada para as câmaras alguma intendência e vários berbicachos, como, por exemplo, a recuperação de edifícios escolares. Para se perceber o que está em causa: o governo propõe-se pagar à Parque Escolar seis vezes mais para a manutenção das escolas do que o que quer pagar às câmaras para o mesmo serviço. 

É claro que se deve saudar a passagem de poder de Lisboa para a “paisagem”. Mesmo tratando-se, acima de tudo, de poder administrativo e burocrático, este processo merece aplauso, deve ser aprofundado e acompanhado dos meios necessários para o exercício das novas competências municipais. O governo de Lisboa não pode querer que os municípios da “paisagem” derretam os seus já parcos orçamentos em obrigações que eram dos ministérios. 

Vai sendo tempo da ANMP bater o pé ao governo. Se continuar tenrinha como tem sido, a debandada iniciada pelo Porto pode não parar e, depois, o mais ajustado será mudar a sigla para ANAMP — Associação Nacional de Alguns Municípios Portugueses.

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2. No dia 17 de Dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um jovem vendedor de frutas tunisino, depois de ter visto a sua mercadoria apreendida por três fiscais, comprou uma lata de gasolina e ateou fogo ao seu próprio corpo. Este acto desesperado foi a faísca para a primavera árabe, o movimento revolucionário que fez abanar todos os regimes autoritários do Norte de África e do Médio Oriente. 

Os jovens usaram com mestria as redes sociais e os telemóveis para mobilizar as pessoas e conseguiram derrubar os ditadores Ben Ali (Tunísia) e Hosni Mubarak (Egipto) e obrigaram vários líderes de outros estados árabes a fazer concessões. 

Como é sabido, infelizmente, aquele sonho democrático transformou-se num pesadelo: o Egipto caiu de novo nas mãos dos militares e houve guerras civis na Líbia e na Síria. 

Deste negrume só sobrou uma luz democrática — o país do malogrado Mohamed Bouazizi. Desde então, a Tunísia teve vários presidentes e governos, isto é, teve alternância democrática. 

Só que as coisas não estão a correr nada bem com o actual presidente Kais Saied que esta semana demitiu 57 juízes, incluindo o presidente do Supremo Tribunal. Isto é, o poder político passou a mandar também nos tribunais. A democracia tunisina já estava nos cuidados intensivos, agora, com mais este golpe de Kais Saied, morreu. 

A primavera árabe foi muito impulsionada pela crise do subprime de 2008 e o aumento do preço dos alimentos. Agora, os mesmos povos que, há uma década, para usar uma expressão de Slavoj Žižek, “sonharam perigosamente” estão a ser fustigados pelo regresso em força da inflação e correm o risco de não terem cereais, por causa da guerra na Ucrânia e o bloqueio putinista ao Mar Negro. 

Isto é, há condições para que a rua árabe entre de novo em convulsão. Se tal acontecer, vai ser tudo menos um sonho democrático. Os ditadores, desta vez, não vão ser apanhados desprevenidos

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