Com açúcar, com afecto

Daqui



"Não assisti ao documentário sobre Nara Leão. Não ouvi de sua boca que não mais a cantará. Se a reportagem da Globo foi fidedigna às suas palavras, você teria dito que “não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim”. Se é isso mesmo, gostaria de lhe dizer como essa música aporta em mim, nesse ínfimo lugar, em minha abertura. Essa mulher que espera seu homem, essa mulher que lhe faz o doce preferido sabendo que o açúcar nada pode contra o apelo das peles coloridas das outras, essa mulher que sabe e prefere ignorar as inverdades desse homem, essa mulher sou eu. Também sou eu esse homem que sai de casa com seu melhor terno para ir à oficina. Sou esse homem que discute futebol, rememora e comemora nos bares das esquinas com os amigos provisórios dos copos de cerveja. Sou eu esse homem que deseja as mulheres ociosas das praias, que canta bêbado e volta para casa, maltrapilho e maltratado, mamado, chumbado e atravessado, para ser acolhido por uma mulher que o quer e aceita. Sobretudo, sou esse homem que nada sabe de si, que ignora seu próprio desejo. Esses dois se encontram nesse lar, onde uma permanece e o outro retorna. Se encontram no desencontro de seus desejos. 

Não sei o que o feminismo tem a dizer sobre isso. E, creio, há muitos feminismos. Mas sei que essas paixões, essas errâncias do desejo, essa inviabilidade do amor, isso tudo não diz da opressão. Isso grita do fundo da alma humana; essa que é contraditória, incompleta e bela em suas imperfeições. Sua música, meu estimado amigo (permita-me tratá-lo assim), não está presa ao tempo das mulheres donas de casa, reféns de maridos que dizem sustentá-las. Sua música foi semeada no campo dos desejos humanos, demasiadamente humanos, e, incontornavelmente, brota."
Ana Lúcia Vilela, texto completo aqui

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