Entrevista de emprego
Fotografia de Charles Deluvio |
Desculpe, tem toda a razão, não pensei que fosse um
aspecto impeditivo,
prejudicial ao nosso relacionamento, claro, claro,
ao nosso relacionamento
profissional, tem toda a razão, devo ter cuidado com as palavras,
sim,
e o senhor, o senhor gosta de palavras, não, mas tem ao menos
cuidado com elas,
e de mulheres, o senhor gosta de mulheres, pergunto, trata-as com
respeito,
o senhor sabe pontuar uma conversa, pergunto, sabe fazer as pausas
certas,
desculpe, tem toda a razão, quem faz as perguntas aqui é o senhor,
e eu respondo, claro, se souber, mas sei pouco, tem toda a razão,
sim, sou formada em Letras, desculpe, sim, sim, gosto de Línguas,
sim,
mas não da sua, confesso, desculpe, desculpe, é que de repente
pensei
que pudesse estar a interpretar-me mal com o duplo sentido da
palavra língua,
sabe como é, hoje em dia todo o cuidado com a palavra é pouco
e eu tinha acabado de lhe perguntar se gostava de mulheres,
podia soar a sedução,
na verdade só procurava saber se o senhor era machista,
desculpe, fui indelicada,
sim, tem toda a razão, eu gosto é de livros, eu gosto é das
notícias que não vêm
nos jornais, eu gosto é de histórias de encantar, mas olhe que há
algumas bem cruéis,
não, não são só as de terror, olhe que o terror às vezes está aos
pés da câmara,
não, não, eu disse câmara, ouviu bem, achei que se dissesse
cama podia voltar a
baralhá-lo, e daqui a pouco ainda pensava que tenho algum
interesse em si,
tem razão, tem toda a razão, não me lembrei de destacar esse
aspecto no currículo,
não pensei que escrever poemas fosse uma condenação
curricular,
mas já que pede a minha opinião, compreendo que o senhor
não há-de precisar
de uma pessoa como eu, repare, eu gosto de olhar para o céu
horas a frio,
não, não, eu disse frio, ouviu bem, pareceu-me o termo
adequado a este diálogo,
e sim, tem toda a razão, eu não devia tê-lo feito perder o seu
tempo, desculpe,
desculpe não lhe ter dito mais cedo que só sei ler e escrever,
desculpe não lhe ter dito mais cedo que sou apenas o contrário de um analfabeto.
Filipa Leal
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