Porto — Lisboa, a pedir esmola


Vinha a fugir à polícia já não sei bem porquê (ou sei?) desde a Régua. Para despistar, apeei-me do comboio em Valongo, fazia um frio que nem calculam. De camioneta para o Porto, depois de um café com bagaços. Fui ao Teatro Experimental do Porto pedir ao João Guedes dinheiro para a viagem até Lisboa amada. Mas ele que me viu transtornado (supôs que era dos copos) abonou-me só cinquentas. Não dava. Não chegava.

Resolvi atacar a fundo. E, tomando precauções disfarçatórias, muito antes da hora do comboio, o correio, fui falar com o chefe da estação de São Bento. A quem expus, um pouco atabalhoadamente: tinha em Lisboa uma pessoa de família gravemente doente (era mentira, como sabem) e havia de tomar o comboio desse lá por onde desse. E porque isto e aquilo. E assim e mais assim. O tipo, quando me viu tão resoluto, não percebi se me quis ajudar ou se foi só para me despachar em beleza. Disse-me: "Vá à bilheteira e tire bilhete até onde chegar o dinheiro. Depois fale com o chefe do comboio." Achei que era um empurrão e valioso. Quanto mais longe da polícia (que me topara em Ermesinde e nunca mais me largava) melhor. Fui à bilheteira e comprei bilhete para Soure. Depois, sempre a disfarçar, e porque na hora do comboio podia haver vigilância em São Bento, como já me tinha acontecido antes, resolvi tomar o comboio na gare das Devesas, que era discreta. E atravessei o rio, pelo tabuleiro inferior da ponte, a pé. Nas Devesas não houve azar nenhum e, entrado no comboio, encharcadíssimo, com a gabardina que, torcida e escorrida, parecia um esfregão, comecei a choinar, encostado ao aquecimento. Assim vim, até que passadas horas (o comboio vinha cheio, era meados de Dezembro e aproximavam-se as Festas), decidi-me a seguir o conselho do chefe de São Bento. Não fosse ultrapassar Soure e entrar em transgressão. Com os sarilhos que me perseguiam, não convinha acumular. 

Procurei o revisor e disse-lhe: "Olhe que o meu bilhete é para Soure mas eu vou até Lisboa. Depois telefono e vem um amigo meu que paga a diferença, a muita e o mais que for preciso." E para meter o homem no coração, impingi-lhe a história da pessoa de família, etc. E por ora, e porque deixa. Patati, patatá. Capisce? O homem ouviu ouviu e foi chamar o chefe da composição. Que era um traquinas de palmo e meio (com homem pequenino não te metas…), ressequido e velhaco, irado. Mais bera que os beras. Este foi ditatorial: que eu havia de me apear em Soure e mai’ nada. Não atendia ao amor de família, o anãozinho, Deus lhe perdoe! Como sou teimoso e não gosto de ser contrariado, barafustei com o tipo. "Dali (do comboio em andamento e a parar quando lhe parecia conforme o horário do percurso) ninguém me arrancava!" Repeti uma data de vezes a aldrabice da doença familiar e ia ganhando tempo, que era o meu fito. O revisor, ao lado, não dizia nada. Olhava para um e para o outro. Ouvia, calado. Como se meditasse. Como se me estivesse a dar razão. Quase. Visto que não abria o bico e não fazia coro com o chefe. E com isto passámos Soure. A minha causa ia em bom andamento. O chefe do comboio ainda me voltou a dizer das boas mas agora o caso era outro.

Qual era? Eu ia em transgressão, mas cumprira as ordens do chefe de São Bento, que era o que importava. Agora o problema não era meu (mas dele, revisor; por isso acho que este rapaz merece uma palavra amorável neste verídico relato. Ajudou-me, como o outro, talvez sem querer. Apenas por comodidade. Apenas? Nada de exigências éticas: vão lá saber as razões de cada qual).
De quem era o problema? Pois do revisor. Que mo expôs. Era uma chatice. Chegados a Santa Apolónia, ele tinha de levantar um auto, devia regressar ao Porto no comboio das onze e tudo aquilo era uma trabalheira, uma maçada. "Por acaso", insinuou com certo optimismo, lisonjeiro para mim, "eu não tinha qualquer objecto de valor que pudesse deixar como penhor?"; ele confiava. "Um relógio, um…" Eu não tinha nada. Mostrei-lhe a gabardina. Ficámos ambos desolados, desanimados. Não valia nada, nadinha.
Em face do que…

"O senhor podia era pedir. Toda a gente dá. Já uma vez me aconteceu…", sugeria o homenzinho, a tornar-se prestável, a ser amigo, sincero ou quê? também me queria despachar?… mas no bom sentido (e o porquê das razões de cada um, etc.), e digo já porquê: o comhoio galgava Coimbra e ia apitando pela noite dentro, deixando sempre mais espaço (que em casos de polícia é o principal) entre mim e os xuis nortenhos.

"O senhor podia pedir."

"Pedir?!!!", protestei indignadíssimo, altivíssimo e outros superlativos do orgulho ferido (é que a ideia não me convencia, não me surgia prática).

"Sim senhor. Pois, pois. Pedir dá resultado." E foi uma nova e grande discussão, mas em termos amenos. De coexistência pacífica, diríamos hoje. Eu com a doença imaginária do parente, ele por via das chatices burocráticas da C. P., do que era agora o meu caso, marrámos, desfilámos uns quilómetros, o que constituía, de qualquer modo, vantagem a meu favor. "Sempre a andar, meu lindo! apita e não pares!", badalava em silêncio o meu coração alvoroçado, a encolher-se de medo. Por fora, era todo nobreza (eu). Mas convenci-me. O tipo estava a ser tão porreiro. E depois era questão de experimentar. Se não desse, voltávamos ao meu ponto. Disse afinal que sim, estava bem.

Aquilo foi limpinho. O revisor falou alto para uma carruagem de terceira que ia à cunha, nos bancos e no corredor, gente ensonada e moída, bacolejada, embalada pelo ritmo das vigas de aço; muitas malas, cestos e bagagem vária, alguns garrafões de mão em mão, ensopando goelas.

O revisor fez-se ouvir (era uma autoridade, ali):

– Aqui este homem (ofendi-me todo) não tem dinheiro para a passagem e chegando a Lisboa fica preso (exagero). Os senhores querem ajudar?

Houve um silêncio. Curiosidade. Expectativa.

– Eu sou o primeiro a dar – disse o revisor, como se alguém lhe tivesse pedido alguma coisa. Mas era para mostrar que era camarada e demonstrar exemplo. Vai nisto, mete-me na mão dez tostões.

– Ai, é assim?! – disse eu. – Atão, também eu dou.

E com a direita meti na esquerda todos os trocos que tinha na algibeira. Começámos o peditório. O revisor só não aceitava de magalas, que, coitados. O mais, o que viesse era bem dado, repetia. Em carruagem de terceira e mais meia eu tinha a mão cheia de moedas, e já de vinte e cinco tostões, cinco escudos, já dezes. Começámos a ferver. E o entusiasmo contagiou-se. Havia quem gritasse: "Canto é que falta queu ponho o resto?!" (o que comprova a doutrina que os grandes movimentos de solidariedade colectiva o bom é começá-los e não só: prova a generosidade da gente portuguesa, pormenor típico que me é grato registar, já que era eu o beneficiado). E mais do que um. Aquilo viria a ser o maior negócio do ano? olha se se explorasse comercialmente, industrialmente? começava a delirar. Mas o revisor cortou-me as esperanças, as ambições:

– Ora conte lá! – ordenou.

O que fiz. O percurso Soure-Lisboa, mais o excesso, os por cento da multa, faltava pouco. E apareciam voluntários que queriam arrematar, com um calor (talvez dos copos mas) sentido, exuberante. Os nossos votos (eu e o revisor) estavam em leilão. Um tipo qualquer pagou o resto, com os meus agradecimentos. E enquanto o revisor me passava um papelinho, escrito num lápis comovido, eu procurava um canto para choinar, legalizado, legalmente. Nem pensava em despistar. Aquilo correra muito melhor do que pensara.

Pensava. Fui preso oito dias depois, em Bucelas, num pequeno café, quando via e ouvia a Sinfonia Incompleta na televisão. E o João Miguel, o meu filho mais velho, então um garoto, que estava ao lado, não gostou da coisa. Era quase Natal (1959).
Luiz Pacheco
Texto abduzido daqui



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