Se eu pudesse dormiria abraçada com elas
Fotografia de Oswaldo Ibáñez |
se eu pudesse dormiria abraçada com elas
todas as noites
por exemplo
no dia seguinte viraria para o lado e me fingiria de viva
não tenho que lidar com pedras que não são minhas
eu só quero dormir com elas sem ter que recolhê-las
sem ter que dar-lhes um nome um dinheiro para passagem de volta
se eu pudesse eu manteria distância de discursos
que me impõem uma responsabilidade por pedras
que não são minhas
a do peito
a dos rins
a do sapato
essas sim
eu carrego diariamente minhas próprias pedras sem nome
que é para não desenvolver algum vínculo
para não aparecer remorso na hora de jogá-las
de atirá-las
num rio
num rosto
num buraco que precisa ser tapado e só minhas pedras cabem
eu carrego diariamente minhas pedras
por ruas sujas e curiosamente ausentes delas
às vezes algumas me acertam a nuca
num movimento de destreza eu as capturo no meio das minhas costas
e digo: por aí só passa mão língua ou pomada relaxante muscular
se eu pudesse eu daria a algumas pessoas da minha vida
suas próprias pedras para desenvolverem responsabilidade
por algo realmente seu
se eu pudesse eu fingiria que essas mesmas pessoas não existem
nem elas
nem suas pedras
nem seu afazeres que não me dizem respeito
as pedras que às vezes surgem no caminho
não turvam a vista
não cansam os modos
eu as recolho
uma a uma
e dou pro moço que pesa objetos superestimados na esquina
para ver se eu descolo algum dinheiro
às vezes não valem nada
nem sequer pesam
mas alguém diz que pesa
que prende na garganta
que ataca o peito
eu apenas recolho
para evitar bagunça
para ver se eu consigo trocar por algodão doce
feito se fazia com panelas velhas em 1999
se eu pudesse eu comeria tuas pedras para saber o gosto que tem
ser tua pedra
andar no teu bolso
no teu anel
no teu pescoço
mas nunca te pesar o peito.
Ágnes Souza
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