Estes homens esbulham-nos

É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores.

Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma sumptuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. 
Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável.
Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se — o espírito do último homem. 

Queres um cigarro? — pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. 

E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho baton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica — eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?
Herberto Helder,
Os passos em volta (1963) 


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