O Domingo de Páscoa do padre Francisco — por Aquilino Ribeiro

Cura, de Rafael Bordalo
Pinheiro
Homem de seiscentos diabos aquele senhor padre Francisco, tão escoteiro nas suas obrigações de pároco como, pelos montes, a bater as lebres! Bofe, no domingo de Páscoa, tinha alma de tirar o folar em Peva, abadia de três povoações com passante de trezentos fogos, pôr-se em Aris ainda muito a horas para a segunda missa e a visita ritual aos fregueses. De boas pernas dispunha — a égua ruça que, mau ano, bom ano, dava cria para o Trancoso e, de avantajada e andeira, na vasta redondeza, só os cegos ignoravam. Além da horsa papa-léguas, a engrolar o latim era ele subir ao altar e, mal um cristão se precata, vê-lo de braços abertos ite missa est. Atabalhoado, sim senhor, não obstante é preciso rasgo até a alinhavar.

Obra das duas da tarde, começava para os matutos de Aris a missa da Ressurreição; ofício de muita pompa, com o sol a dizer aleluias nas janelas, camisas lavadas a luzir na brenha dos fiéis, o rescendor do alecrim e da alfazema das hortas a avisar do maio moço, troca-burras, amarelo na Serra, pardo nos centeais, verde nos linhares, por baixo da capa de oiro que traz vestida como um bispo pluvial. Por ali fora, in illo tempore, kirie-eleison, kirie-eleison, a missa lá ia levada tão de afogadilho que o acólito mal tinha tempo defazer as mesuras da lei. Mas bem haja ele, graças a Deus desse-as cada um em sua casa com mulheres e filhos, podendo estendê-las tão longe como léguas antigas. Ali era para ser visto de santos e santas, enxotar o Porco-Sujo com dois pingos de água benta, e pedir a Nosso Senhor que trouxesse boa meda de pão ao serrano e o livrasse das correias de soldado e das garras da justiça. Isto feito, ala que se faz tarde.

Pela presteza, queriam ao padre Francisco, como nunca vieram a tragar o padre Zé Noquinhas que era um ronceirão e, a ler no missal, parecia mesmo uma velha a rilhar castanhas.

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Convinha-lhes o padre Francisco porque era homem de peso, tinha ali parentes e, pastoreando já em Peva, havia de ser mais maneiro que pároco encomendado na cobrança de alcavalas e pé de altar. Neste ponto, porém, lhes saiu o cálculo goro; o padre Francisco não desperdiçava uma migalha, que os dois filhos, estudantes, eram um sorvedoiro sem fundo. Aldemenos não era tanateiro nem beato, tendo sempre agrados para o rico e o pobre, e lesto nas obrigações como ele não havia na diocese. Era ver aquele domingo da Ressurreição em que, com dois secula seculorum, mais dois amen dico vobis, a missa estava no papo.

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O dia de Páscoa era uma malhada para os padres. Enchiam as queijeiras e chegavam a criar-lhes mofo nas arcas os pães-de-ló e os bolos de trigo folhado. Os ovos que ajuntavam enfartariam um convento de gulosas freiras com seus capelães durante um trintário.

— Havia de ser duas vezes no ano! — murmurava a Srª Ana, despejando na residência os cestos que, de espaço a espaço, lhe carretavam Florinda, Glorinhas e a Guiomar do André.

A visita ia dobando, numa presteza de «acudam ao fogo». 

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A Páscoa corria satisfeita.

Soava a campainha perto e, ao fundo da viela, duma porta para a outra, relampejavam a cambraia do abade, a opa do Torres que tingia a atmosfera com seu sangue de boi, e toda a ruidosa manobra dos piratas.

Era uma balbúrdia, e até as lájeas sobre que se empoleirava aquele povo carrapitano pareciam revestir um ar de festa.

— Aleluia! Aleluia!

— Aleluia! Aleluia! — respondiam todos, casa a casa, no maior alvoroço visto que não magnificavam apenas à grande nova da Redenção mas ao tempo quente e aos dias grandes, que o Pai do Céu estava mesmo a anunciar com a rosa vermelha por detrás da nuca martirizada.

Como o Sr. Padre Francisco se detivesse, apenas, a rezar o responso pelos mortos nas casas dos muito amigos, a visita terminou às horas costumadas de saírem os gados. A bufar de cansaço, a calva orvalhada de suor, meteu logo para a residência, casa de muitos cómodos em negra pedra de fortaleza, grandes salas em tabuleiro, tulhas para os cereais, e estrebaria para muitas cavalgaduras. Aris fora noutras épocas abadia de estrondo, lá estava o passal e a igreja em rica obra de talha, como não havia por ali perto, a atestá-lo.

A Sra. Ana, com as pimponas de Seitosa que a haviam acompanhado, tinha o jantar pronto a saltar para a mesa. O Sr. Padre Francisco abancou, mal despiu o roquete, e, sem dizer Santa Maria vai, acometeu o prato da sopa a fumegar. Os ajudantes também não se fizeram rogados, afora o Joaquim Javardo, o somítego, que primeiro se abraçou à cântara da água.

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Comeram-lhe à tripa forra carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. O arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho de sal, até fazia cócegas no céu da boca. Quem bem come bem bebe, acabaram a janta enfrascados e lerdos como patos na engorda.

O Sr. Abade desabotoou o colete de sete botões e a marca cimeira das calças, safou o cabeção de arrangamalho, e correu a deitar-se em cima da arca que ali tinha para as ementas. 

in Terras do Demo, de Aquilino Ribeiro



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