o barco no interior da curva

Fotografia Olho de Gato


nunca estive em casa em portugal place

ninguém por lá me teria encontrado

vesti nesses dias as roupas monótonas 

das entrevistas de emprego 

as mesmas quatro camisas e as três gravatas muito baratas

que trouxe sempre com um nó muito mal feito

conversei com gente a quem não tive

nem tenho 

nada a dizer  


x dizia-me mal de y nas nossas reuniões 

mas não esperava que eu lhe dissesse mal de y

queria apenas uma audiência 

para a sua destreza verbal

y por outro lado dizia-me mal de x

nas reuniões com ele 

e esperava a minha lealdade

más palavras, indignação 


aéreo e inútil como um poeta

eu sentia tédio e esperava o amor 

educado como os ingleses

pensava com grande ansiedade 

nos motivos da morte de pátroclo em tróia 

à qual sabia que se ia seguir 

a raiva de aquiles e a morte de heitor

e a minha vida que precisava de mudar

mas não me dispensava de ler rilke

falava de aristóteles a adolescentes

que sabiam que lhes estava a dar

notícias de outro planeta 

e o passado era uma nação estrangeira e irrelevante

como flechas que trespassam os calcanhares dos grandes heróis

para que eles apodreçam altos e imóveis 

sobre o chão calcinado de cidades a arder 


ao fim do dia ia sozinho de parque em parque

e queria falar-te de sylvia plath

esquecia-me aos poucos de como nesta altura

as mãos aquecem nos cartuxos das castanhas

em lisboa só para que fique connosco a sua nostalgia

trazia para sempre no bolso a moeda com que as pagaria 


a moeda de um preço-fantasma 

que como sabia ulisses é a dor 

que se paga pelo regresso 

ou queria descrever-te nas cartas que te escrevia

como é preciso e peculiar o entardecer 

no outono em inglaterra 

como é às vezes o mais profundo tom de laranja

mas sem calor como fogo extinto

queria dizer-te isto não sei se

para que alguém entendesse

como era estar aqui 

ou porque não sabia como dizer-te

que queria que visses estas coisas comigo

ou talvez para que alguém me explicasse

como era isto visto de fora

mas tinha nojo das palavras

e não te escrevia nada 

ou coisas pretensiosas  


como por exemplo o exílio não é isto que se vê aqui

mas é antes 

a surpresa cansada do olhar de suzon

ao encarar com o rosto do homem

que a olha do lado errado da perspectiva

numa tela de um quadro do século XIX onde o som não entra 

mas onde o som se sente 

esse som que chegaria mais tarde e eu não sabia

como esperar por ele 

apenas que era preciso esperar por ele

como quem aprende a resistir 

esse som de que eu andava à procura

viria muito mais tarde 

caminhando entre tanta gente 

nas pausas do entardecer 

em montmarte rue racine 

bloomsbury camden town  


mas não era este o tempo dos amigos 

não havia então amigos em parte nenhuma

ou eu não sabia como falar com eles

assim começava a segunda juventude

as maçãs começavam a cair das árvores 


em st. edmund’s o escândalo eram os rapazes

que st. john’s tinha aceitado

remadores olímpicos do togo e da nova zelândia

convertidos em estudantes de química e engenharia

para remarem nas corridas de barcos 

os seus nomes enchiam as conversas

em redor das mesas de bilhar 

onde ia ver jogos que me aborreciam

por causa da cerveja 

para durante horas evitar

abrir um livro ou falar com quem fosse 


e só anos mais tarde numa curva do isis 

uma amiga me levou a ver e entender a força brutal 

com que os remadores nas curvas

nesses barcos ligeiros

encurralam os outros remadores ferozmente

quase embatendo contra eles

para os ultrapassarem 

liberdades abruptas colidindo

com uma precisão apaixonada e feroz 

cuja utilidade é ultrapassar o peso dos barcos

do tempo das coisas que nos deixam sitiados

às vezes o barco que vem no interior da curva

consegue ultrapassar o outro no último momento

e escapar-se deixando à outra tripulação

o embate com a amarga margem

mas às vezes não escapa  


naqueles meses as maçãs 

começavam a cair das árvores

e iam gelando e apodrecendo no chão        

eu comecei a ir e vir das casas dos pintores

onde falávamos de poemas 

de visões imprecisas cuja nitidez

se reconstituída é a recompensa de si própria

nem mais um gesto nem uma palavra a mais


e às vezes demorava-me voltando 

saía para fora da cidade

e ia para lá do observatório e do cemitério

dos soldados americanos caídos na guerra 


e irritava vizinhos voltando quase de madrugada

e fazendo disparar

as luzes automáticas perto das cancelas

que deixavam ver apenas 

os fantasmas das árvores quase despidas

a cor das árvores do outono

enterradas numa quase escuridão

dourado com cinzento 

e raposas que não temiam vizinhos irritados  


um dia alguém com muito cuidado

apanhou todas as maçãs que restavam 

escolheu de entre as podres as maduras

e deixou-as em filas muito direitas

em cima da mesa com um cartão 

onde se lia apenas 

com uma precisão anónima

liberta desinteressada 

please help yourself 

Tatiana Faia




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