"Ex-vida", de Pier Paolo Pasolini

Os Contos de Cantuária — I racconti di Canterbury, Pier Paolo Pasolini (1972)



No meio de um ténue fedor de matadouro

vejo a imagem do meu corpo:

seminu, ignorado, quase morto.

Assim me queria crucificado,

num clarão de delicado pavor,

quando era criança, já autómata do meu amor.

Mas por trás desta névoa de medula

(há quantos anos ou séculos aqui imóvel?)

ó Indivíduo, ó Sósia, descobres que és

feito de mim, do meu calor, e hostil

a uma morte anterior à minha.


Eu venho até ti depois de uma viagem inebriante.

Toquei, em dias de plena luz, as paredes

enegrecidas e a relva húmida de Casarsa.

Com um gesto negligente de guerreiro

ofereci o corpo nu ao tempo fresco

antiquíssimo, lânguido, de Meschio,

de Livenza, do Po... Brinquei na orla

de uma grande planície, nos seus prados

tórridos, sob céus intermináveis,

nas casas rejubiladas no seio de um leque

de mil cheiros afectuosos, subtis.


Entro no teu círculo, amargo, fresco

como minha mãe à tarde ao passar

o limiar da porta, emperlada de erva seca,

e trago comigo um vento de paisagens,

uma soberba leveza, uma cândida

coragem de forasteiro. E tu não exalas

senão silêncio. Ó desconhecido que foras tudo:

o rapaz perdido em casa,

o jovem burguês que acalentava

os falsos amores no seu amado coração,

agora és nada, O NADA, o puro erro.


E assim, ó esfomeado, ó desejo obscuro,

com um olhar de eras pré-humanas,

exprimes a tua vida de maníaco.

A tua mania é a vida do mundo.

De mim só pretendes que corresponda

ao teu louco esforço de te anulares,

ignoras todas as atracções do meu século,

todos os feriados, todas as paixões aprendidas

nos anos de uma vida abrasada de si mesma:

não te interessa saber que, no tempo, a eternidade

se oferece a festas quase eternas.


Ignoras também jogos ainda mais vitais:

confessar os desejos masculinos,

o amor pela minha mãe, que TU amaste,

a luz estagnada nas profundezas da noite

da infância...(Ó derradeiro candor

deste meu exibir! E tu ignora-lo.)

Amei somente quem tu odiavas.

Eternizei a minha sombra de jovem

para dela lamentar, ávido, os afectos

cheios de esperança, os ardores de lírio,

que inflamavam a minha carne de filho.


Por ti, num deserto de serenidade,

desonro o pobre segredo

do meu sexo, e, despreocupado, confesso-o.

Não sei por que milagre, sossegado

e enfim honesto, invoco das minhas neuroses

céus puros, lugares inodoros,

onde – como Matéria ou Morte – morres.

Sim, muitas vezes estás morto, e o rapaz 

volta alegremente ao ventre, e o mitómano

à branda forma pleno de entusiasmo,

quando apenas a vida lhe resta.


Mas tu, nos confins do tempo, aqui me esperas,

dentro de mim, onde o ventre e os músculos

se contaminam de um fedor ameno de musgo

ou de excrementos; e enquanto uma escuridão nua

de vão de escada ou de bivaque

se adensa, vejo-te, múmia, autómato,

e vês-me a mim. Ó nostalgia mortal

para quem nunca te conheceu, e que ignorando,

ó puro Ser Vivo, as tuas angústias de orangotango,

perdia-se no próprio jucundo destino,

coração desconhecido num mundo desconhecido.

Pier Paolo Pasolini

Trad.: João Coles



Esta es cómo Santa María curó en Atocha que es un lugar que está junto a Madrid,
a un niño que tenía una espiga de trigo en el vientre 

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