Ao sair esta tarde do teu quarto [Maria do Rosário Pedreira 5]

Fotografia de Sydney Sims



Ao sair esta tarde do teu quarto com a lentidão
de um rio sob a ponte e a boca triste a retalhar-lhe
o rosto, esse homem a quem tu chamas médico
(mas que é, na verdade, um mago que lê nas veias e
adivinha o futuro) encostou a porta devagar; e disse
depois muito depressa — como uma faca que se risse
num corpo ou um ponto de luz que se apagasse
no céu — que afinal já não irias ter tempo para ver
os frutos derramarem-se das árvores deste verão,
nem os barcos que fendem o mar quando se cruzam
com o crepúsculo, nem sequer o mosteiro onde,
se fosses crente, mandavas rezar missa pela tua mãe.

Se as lágrimas não me tivessem então estremecido
nos olhos e um vento glacial não desenhasse de repente
as formas do meu corpo no vestido (e isso, não sei porquê,
me intimidasse), ter-lhe-ia respondido que se enganara:
porque era eu quem não teria já tempo para salvar-te,
era eu quem morrera com a pancada seca da verdade.
Maria do Rosário Pedreira


Comentários

Mensagens populares