A mulher acordou sendo da cor de um lírio

Fotografia de Tam Wai


A mulher acordou sendo da cor de um lírio
Apesar de os lírios poderem ser de várias cores,
a mulher acordou e pensou: sou da cor de um lírio
E assim foi,
porque nada impede a mulher de escolher
qual a cor que quer ser,
e se é de lírio, ou não

Carregava a luz como um cântaro na cabeça
Entrava na rua violentamente às avessas
Ela pensava: quero ir contra as coisas
porque normalmente são as coisas que vêm
contra mim
são mais as coisas que me escolhem do que
as coisas que sou eu a escolher
eu nunca vou contra nada

E rodava de tão contrária
Não respirava, sendo lírio,
escolhendo as coisas,
caía exclusivamente límpida
rente à curva do alcatrão
Ela pensava: que bom é cair
porque normalmente não se pode cair em
nenhum lugar
querem sempre levantar-nos,
não entendem que é preciso cair,
é preciso estar junto ao chão para depois
se subir em verdade e ver tudo
Normalmente não se pode ser uma mulher da
cor de um lírio, viva, caída, escolhendo coisas,
muito menos no alcatrão

Então escolheu abrir o peito com as mãos
as mulheres podem abrir o peito com as mãos
as mulheres podem abrir tudo o que quiserem,
as mãos das mulheres são peitos abertos
E pensava:
Esta sou eu
da cor de um lírio
viva, caída e límpida,
com o peito aberto

E viu os filhos dos outros à estalada com a dor imensa
Porque as mulheres vêem sempre, sobretudo a
dor imensa
Viu as mães que voavam, frias, às costas dos filhos,
alimentando-lhes a casca de universo
Porque são as mães que aumentam tudo o que é
do universo, sobretudo os filhos
E pensava: eu também sou mãe
agora que estou caída e vejo tudo,
agora que sou da cor de um lírio, com o peito aberto
e conheço a dor imensa,
posso ser mãe
Vou ser mãe de tudo o que me ignora
os meus filhos estão debaixo do chão,
são tão invisíveis que podem ser tudo
Mas os filhos podem sempre ser tudo
tal como as mães, que são também mulheres
que podem escolher a cor que quiserem ser,
até a dos lírios,
rente à curva no alcatrão

E caída, fez a barriga mais alta
De olhos fechados cheirou os filhos que
nunca viu, tantos, tantos
E ia sendo as coisas todas,
as que ela escolheu porque caiu,
porque andou às avessas,
porque era ela, pensou, era ela a ser

De repente, a mulher explodiu dentro das outras
Porque as mulheres explodem sempre dentro das
outras mulheres
sobretudo quando são da cor dos lírios,
sobretudo quando foram contra as coisas com uma
dor imensa
e explodem também dentro dos homens que as viram
caídas no alcatrão,
depois de escolherem os filhos invisíveis,
sendo mães que aumentam o universo,
com o peito aberto

E pensava:
O que será que quer dizer tudo isto
De onde vêm os lírios
De onde vem esta mulher
Nem se pode dizer o seu nome,
o mundo estala
Cláudia R. Sampaio


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