A primavera

A Primavera, têmpera sobre madeira
de Sandro Botticelli (1482)


(...)
Uma dama sozinha de repente,
Que, cantando, escolhia, de entre as flores,
Que o chão cobriam de matiz ridente.

— “Bela dama, que sentes os fervores
Do amor divino, se por teu semblante
Da tua alma julgar devo os ardores” —

Assim falei — “se caminhar avante
Até perto do rio te aprouvera,
Te entendera esse canto inebriante.

“Tão linda, em tal lugar, lembras qual era
Prosérpina, ao perdê-la a mãe querida
E ao perder também ela a primavera.” —

Qual menina, que em danças entretida,
Gira ligeira em terra deslizando,
Os passos troca e volve-se garrida,

Sobre o esmalte das flores se voltando,
A mim se dirigiu, como donzela
Que vai, modesta, os olhos abaixando.

Quanto o desejo meu sôfrego anela
Acercou-se e da angélica toada
Distinta pude ouvir a letra bela.

Logo em chegando à borda em que banhada
A erva era da linfa cristalina,
De olhar-me fez a graça assinalada.

Não creio que na vista peregrina
De Vénus lume tal resplandecesse
Ao feri-la de amor seta maligna.

De fronte aos olhos a sorrir se oferece.
As mãos de lindas flores tendo plenas,
De que espontâneo o solo se guarnece.
(...)
A Divina Comédia, Purgatório, excerto do Canto XXVIII
Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro


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