O óxido pousou sobre a minha língua

O óxido pousou sobre a minha língua como o sabor de um desa-
parecimento.

O esquecimento entrou na minha língua e não tive outra conduta
a não ser o esquecimento,

e não aceitei outro valor a não ser a impossibilidade.

Como um barco calcificado num país do qual se retirou o mar,

escutei a rendição dos meus ossos depositando-se no descanso;

escutei a fuga dos insectos e a retracção da sombra ao ingressar no
que restava de mim;

escutei até que a verdade deixou de existir no espaço
e no meu espírito,

e não pude resistir à perfeição do silêncio.

Não creio nas invocações mas as invocações crêem em mim:

vieram outra vez como líquenes inevitáveis.

A fermentação do verão introduz-se no meu coração e as minhas
mãos deslizam cansadas na lentidão.

Vêm rostos sem projectar sombra, sem fazer estalar a simplicidade
do ar;

sem ossatura ou trânsito, como se consistissem unicamente
no conteúdo dos meus olhos, na unidade das minhas palavras,
na espessura dos meus ouvidos.

São obedientes e eu sinto a sua reunião como uma saúde que se
refugia a escuridão.

É uma amizade dentro de mim mesmo,

é um estame urdido por mãos que são suaves no interior dos dias.



Agora é verão e abasteço-me de alcatrões e espinhos e lápis iniciados

e as sentenças sobem às cânulas dos meus ouvidos.

Saí do quarto obstinado.

Posso encontrar leite em frutos abandonados e ouvir chorar num
hospital vazio.

A prosperidade da minha língua revela-se naquilo que foi esqueci-
do durante muito tempo e no entanto visitado pelas águas.

Este é um ano de cansaço. Verdadeiramente é um ano muito velho.

Este é o ano da necessidade.

Durante quinhentas semanas estive ausente dos meus desígnios,

depositado em nódulos e silencioso até à maldição.

Enquanto isso a tortura pactuou com as palavras.

Agora um rosto sorri e o seu sorriso deposita-se sobre os meus
lábios,

e a advertência da sua música explica todas as perdas e acom-
panha-me.

Fala de mim como uma vibração de pássaros que tivessem desapa-
recido e regressassem;

Fala de mim com lábios que todavia correspondem à doçura de
umas pálpebras.


Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
mercúrio,

vou estender os meus braços e penetrar na erva,

vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
para que me convoques na humidade das tuas axilas.

Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,

como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,

até submergirem o meu corpo em águas que não palpitam,

até cobrirem o meu rosto com pomadas da majestade.

Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
meus ossos;

é mais belo e antigo: alentar sobre o vinagre até o tornar azul,
adiantar um faca e retirá-la húmida de um exsudação que
dignifica o esgrimista.

Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
na negação.

Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
cilio mas amo o que ficou de nós.

Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
sitantes. Há formigas debaixo das chagas.

Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
fuga das espécies que nos abandonaram.

Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.

Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
mas excitante e doce na povoação como o é o sumo guardado
em vasilhas muito escuras.

Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
ácidos no meu corpo.

Que verdade existe no ventre das pombas?

A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?

A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?

Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?

Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
pergunta:

para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
esquinas imóveis,

as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?

Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?

Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.

A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
não devem ser abertos.

Sujo, sujo é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
um animal resplandecente.

Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
cerne?

Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,

com tudo o que treme e é amarelo debaixo da noite.
Antonio Gamoneda
Trad.: Vasco Gato

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