Beatas woke*
* No Jornal do Centro aqui
Em 1977, Roman Polanski foi acusado de ter abusado sexualmente de Samantha Geimer, uma menina de 13 anos. Como as coisas na justiça norte-americana estavam complicadas e corria o risco de malhar com os ossos vários anos na prisão, ele apanhou um avião para a Europa e nunca mais pôs os pés nos EUA.
Esta condição de “foragido” não o impediu de fazer vários filmes excepcionais. O último que vi dele foi “J'Accuse”. O título é uma referência directa ao artigo de Émile Zola, publicado no L'Aurore, em 1898, em defesa do capitão Dreyfus, um inocente que tinha sido apanhado pela roda implacável da “justiça” militar francesa.
“J'accuse” é um grande filme. Passável em qualquer sala de cinema.
Só que... vejamos o que aconteceu no Le Trianon, uma popular sala de cinema de arte e ensaio de Romainville (França), que vende 68 mil entradas por ano. A sua competente programadora, Annie Bichet*, agendou aquele filme de Polanski para uma semana de Dezembro de 2019. Essa decisão foi, sob todos os aspectos, lógica: “J'Accuse” tinha recebido o Prémio do Júri do Festival de Veneza quatro meses antes, estava a ter muito impacto nos media, o público estava ansioso por o ver.
Só que... um grupo de “activistas” (agora, como se sabe, qualquer bicho-careta se diz “activista”) fez tudo para cancelar o filme e acusou Annie de “cumplicidade” na violação. Assim mesmo. De “cumplicidade”.
Já se sabia há muito que as beatas woke são tão parvas que acham que um artista e a sua obra são uma e a mesma coisa. Mas, com esta acusação absurda a Annie Bichet, saltaram para um patamar de intolerância ainda maior: agora, para elas, quem vê, ou dá a ver, a obra de um biltre passa a ser um biltre. Para elas, quem pendurar um quadro de Degas é anti-semita, quem publicar Ezra Pound é fascista, quem ler Genet é ladrão, quem folhear Byron dorme com a irmã, quem apreciar Flaubert paga a rapazinhos, quem reflectir sobre a Guernica de Picasso maltrata a sua mulher.
Annie Bichet — Cavaleira da Ordem Nacional do Mérito da República Francesa pelos seus 36 anos ao serviço da cultura — sofreu muito com aquele ultraje, com aquele ataque à liberdade. Mas resistiu. Apesar dos uivos nas redes sociais, “J'Accuse” não foi cancelado. O público acorreu ao Le Trianon, comprou o seu bilhete, viu o filme e esteve-se nas tintas para aquelas “feministas” de pacotilha.
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* A última edição do Argumento, a excelente revista do Cine Clube de Viseu, traz uma entrevista a Annie Bichet
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