E o rei Van Gogh dormitava
E o rei Van Gogh dormitava, a incubar o próximo alerta de insurreição da sua saúde.
Como?
Pelo facto de a boa saúde ser pletora de males já muito experimentados, formidáveis ardências de viver por cem ferimentos corroídos, e que apesar de tudo temos de fazer viver,
temos de levar a perpetuar-se.
Quem não cheira a bomba assada e a vertigem comprimida não é digno de estar vivo.
Foi o ditame que o pobre Van Gogh em acesso de chama fez questão de manifestar.
Mas o mal à espreita foi-lhe doloroso.
Atrás de uma cara honesta o turco aproximou-se delicadamente de Van Gogh para colher nele a amêndoa torrada,
a fim de soltar a amêndoa torrada (natural) que estava a formar-se.
E com isso Van Gogh perdeu mil verões.
Morreu disso aos trinta e sete anos,
antes de viver,
porque antes dele todos os símios tinham vivido forças que ele congregara.
E que será preciso agora devolver, para deixar Van Gogh ressuscitar.
Perante uma humanidade de símio cobarde e cão molhado, a pintura de Van Gogh terá sido a de um tempo em que não houve alma, espírito, consciência, pensamento, só elementos sucessivamente agrilhoados e desagrilhoados.
Paisagens de convulsões fortes, de traumatismos exaltados, como de um corpo que a febre trabalha para levar à saúde exacta.
O corpo sob a pele é uma oficina sobreaquecida,
e lá fora
o doente brilha,
reluz
com todos os poros
rebentados.
Também uma paisagem
de Van Gogh
ao meio dia.
Só a guerra para todo o sempre explica uma paz que só é uma passagem,
tal como um leite prestes a derramar-se explica o tacho onde fervia.
Desconfiai das belas paisagens de Van Gogh em turbilhão e pacíficas,
convulsas e pacificadas.
É a saúde entre duas recaídas de febre que vai passar.
É a febre entre duas recaídas de uma insurreição de boa saúde.
Armada, e de febre, e de boa saúde, um dia a pintura de Van Gogh
regressará para atirar ao ar a poeira de um mundo enjaulado que o seu coração já não podia suportar.
Antonin Artaud
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