Used words

Fotografia de Eileen Pan


Com palavras usadas,

gastas pelo tempo e pelo hábito,

cujo último tremor já não se sente.

Com palavras, como sonhos, queimadas pela vida,

nesta noite de chuva falo contigo,

tento falar pelo menos, ligeiramente ébrio,

construo cada sílaba no país de jamais.

E sinto essa repentina lucidez

com a qual, de súbito, quebramos a rotina de sermos e de conhecermo-nos,

sinto, digo, essa estranha sensação, distante e esvaída,

do whisky, da noite e do silêncio,

do entusiasmado desespero com que aceitamos a derrota,

dessa vertigem, às vezes, só às vezes, tua e minha,

em que morremos a sorrir com os olhos abertos.

Sinto o pouco que é um beijo no fundo da tua língua,

ou os teus olhos a olharem-se nos meus,

ou as nossas mãos unidas no ar,

a percorrer um museu de admitidos fracassos.

Desfilam, batalhão desolado de fantasmas,

nomes e nomes com eco diferente.

Pretendemos, com abolidos rostos, prazos caducados, cidades impossíveis,

responder a uma velha pergunta

cuja resposta só a morte conhece já.

Anos e anos, voluntários exílios de seres e países,

os filhos que não quis ter, os que tu tiveste,

o tremor do desejo que guardas ainda na tua pele,

o meu repetido navegar de cama em cama

reunem-se e afirmam o seu destino

diante da cerimónia do amanhecer.

E sabemos tudo e está escrito nos teus olhos,

hoje, contudo, neste dia com sol — tão raro em Bogotá —

de finais de Julho, de um ano qualquer,

proponho-te o meu amor, sei que aceitarás,

com palavras usadas proponho-te mentirmo-nos.

Já passada a noite, quietos diante do espelho,

enquanto faço a barba e tu pintas os lábios,

proponho-te o meu amor, dizer que nos amamos.

Dizer — e são apenas exemplos — hoje existe a vida para nós

ou tu não morrerás nunca

ou, talvez, ainda há noites e noites que esperam

os nossos braços, esse especial calor de dormirmos abraçados.

Esquecendo, tentando esquecer o nosso passado,

ignorando o futuro sem dúvida inalcançável,

com palavras gastas dizer e repetir

— é outro exemplo — obrigado meu amor por teres existido.

Ao menos por um momento — não incomodamos ninguém —

com palavras usadas mentirmo-nos e mentirmo-nos,

mentirmo-nos contra o tempo, desprezar a sua vitória.


Envio:

Deixo-te este poema

confuso, absurdo, comprido,

para que tu o estendas como um lenço velho

aos pés da tua cama, para que tu o tenhas,

e um dia o encontres, confuso, absurdo, comprido,

num dia como este — quando já não estivermos —

e recordes, debaixo do duche,

que uma vez te amei — mentiras e mentiras —

que uma vez te amei — era um dia de Julho —

com palavras usadas como um disco riscado,

que recordes, meu amor, esta letra de tango.

Juan Luis Panero

Trad.: António Cabrita e Teresa Noronha 



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