No ano passado, tive um Natal dos diabos

Fotografia natalícia de Esther Tuttle




No ano passado, tive um Natal dos diabos.
Saíra do emprego uma hora mais cedo
para ter tempo de tomar um bom banho,
para ter tempo de decidir
as recordações que devia evocar em família
e as que não devia.
Os cartões de boas-festas tinham partido a tempo,
a caminho da estação comprei bolos.
Mas fazia um tempo claro, sem gelo,
um tempo que não suporta peso algum,
no elétrico para casa pareceu-me
haver esquecido em qualquer lado a partitura
que devia ter tocado à noite.
Pendurei o sobretudo no vestíbulo
e entrei no salão, onde estava mais quente
mas o serão transtornava-se,
virando para o céu um ventre branco
de uma brancura de estrelas na noite de Natal;
faltava-lhe o ar, não percebia nada.
Algumas velas iluminavam a árvore
mas já não se entendia porquê.
Um mito chegava ao fim
e o outro, novo, continuava à espera debaixo do horizonte.
À entrada, a secar o sobretudo
ia-se retorcendo aos poucos
como a pele arrancada a um animal há muito tempo.
A um canto, o cano da água
entoava cânticos antigos,
a solteira soltava um bramido,
voz do novo povo, o povo de baixo,
das trevas surgido.
Josef Kainar
Trad.: Ernesto Sampaio



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