Murmúrio*

* Hoje no online do Jornal do Centro

Este texto sai no dia da liberdade, 25 de Abril. Liberdade que nos foi tirada pelo SARS-CoV-2, esse não-ser que nos fechou em casa e pôs a nossa vida em pantanas.

Já se sabe, temos de continuar a manter “distância social”, mas isso dói-nos. É anti-humano. É contra-natura. Nós, os sapiens, somos gregários, pelamo-nos por multidões, adoramos ajuntamentos — exactamente aquilo que agora não podemos nem devemos fazer.

Confinados, quarentenados, em teletrabalho ou não, vamos fazendo muita comunicação electrónica:

— regressou a Telescola, para alegria do eduquês centralista que sempre quis todas as escolas, de norte a sul, a darem o mesmo, à mesma hora; eduquês centralista que sonha em retirar de vez o controlo pedagógico aos professores e secundarizá-los;

— mergulhado numa profunda crise, o sector criativo distribui arte à borla em streaming, o que é um imenso e desesperado tiro-no-pé;

— os jornais abandonam os formatos tradicionais e sofreguizam-se por cliques, partilhas nas redes sociais e pop-ups publicitários irritantes;

— as redes sociais têm ainda mais clientela;

— na comunicação não pública, multiplicam-se os chats e os telefonemas, agora mais em vídeo do que em audio.

Não há aqui surpresas. Como explica Yuval Noah Harari, “as capacidades linguísticas que os modernos sapiens adquiriram há cerca de 70 milénios” permitem-lhes “tagarelar horas sem fim” e que, “mesmo hoje, a grande maioria da comunicação humana — seja sob a forma de e-mails, telefonemas ou artigos de jornais — é composta por mexericos.” Estes mexericos são vitais, permitem-nos ir destrinçando quem é, e quem não é, de confiança e se não podem ser feitos presencialmente são feitos à distância.

Só que estes sucedâneos virtuais sabem a pouco. Faz-nos falta o dizer cúmplice boca-orelha. É-nos vedado o, como diz Umberto Eco, “único e verdadeiramente poderoso meio de informação”: o murmúrio.


Fotografia de George Marks (daqui)

Esta peste há-de passar.

Na que virá a seguir a esta — porque, depois desta peste, há-de vir outra — em vez de vídeos haverá hologramas ou outra figuração tridimensional qualquer. Mas os nossos filhos e os nossos netos vão sentir, na mesma, a falta do olhos-nos-olhos.

E do murmúrio.

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