Situação da indústria portuguesa no início da década

Fotografia de Walker Evans


Às vezes, quando a pressão das entregas aumenta,
ajudo a carregar os camiões,
mas o envenenamento é o fim-de-linha, onde cada tarefa
é como a execução de um castigo. Pagam-me mal,
mal tenho tempo para comer um pão ao meio-dia, sinto
que a força
dos meus dezasseis anos não corresponde ao parco
salário que me devem. De aqui a uns anos, irei cumprir
o serviço militar, perderei a precaridade do emprego, ainda ontem
uma das mulheres quase ficou sem um braço no sector
velocíssimo
da transformação. Servir a pátria é, começo a não ter dúvidas,
sofrer esta amargura endémica, a pobreza a alcançar-nos
em pouco mais de um passo, os olhos corrompidos
pelo vinagre da luminosidade, a consciência das coisas
ilegítima na compreensão da linguagem, eu calo-me,
os outros falam por mim. Olho em volta, sinto
inexplicavelmente a natureza fortuita das coisas, embrenho-me
aos domingos na multidão triunfante, gasto em vinho a humilde
alegria
que as pequenas vitórias me consentem, tremem-me
as mãos só de pensar que existe amor no mundo, algures,
longinquamente,
no infinito da nossa ignorância. Gostava de saber o nome
deste usufruto da terra, quais as cumplicidades
que tornam tudo isto possível, em que lugar de fogo e de agrura
o rosto corresponderá ao rosto e o silêncio
a esta forma de fome secular. Tudo é assim
liminarmente sujo, carregado de sangue e de arestas, e duvido
das proféticas sentenças sobre a vida que me oferecem, sem que
as contemple, ao menos um instante. Ao fim da noite,
aconchego-me ao sol da praia predilecta do meu coração,
tudo me dói,
é um lençol de luz e solidão o que recebo, creio na morte
como única solução, maldito quem por minha vez alguma vez
pecou
sem que ratificasse a estranha recompensa de ter aberto
uma passagem para nenhum lugar.
Agora estou aqui e não posso pensar, uma outra carga
chama-me,
obedeço cegamente ao encarregado geral, ninguém suspeita
mas tenho dentro de mim uma indústria onde ninguém produz
porque não vale a pena.
Amadeu Baptista


Comentários

  1. Boa tarde,

    Antes de mais peço desculpa por estar a usar este espaço não para publicar um post, mas antes para lhe solicitar uma informação. Como não encontrei no perfil o seu mail, tomei a liberdade de abusar.
    Soube que o pai do nosso estimado Fernando Figueiredo faleceu, como me parece pela troca de posts nos vossos blogs e no fb que tem com o Fernando uma relação de amizade, recorro a si no sentido de saber de dispõe de alguma informação sobre horário, local e data das cerimónias fúnebres. Gostaria de poder dar pessoalmente um abraço solidário ao amigo Fernando Figueiredo.

    Grato pela atenção dispensada,
    Com os melhores cumprimentos,
    Nuno Filipe

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    Respostas
    1. O funeral vai ser às 18H00 em Vinhó, Gouveia
      Um grande abraço e até já, Nuno Filipe

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