Por uma arte sem adjectivos*

* Hoje no Jornal do Centro, nas bancas e aqui

1. Amainada a turbulência que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, muita da energia que tinha investido na “revolução” transferiu-se da política para a militância sociocultural (era assim que então se dizia), contribuindo para o predomínio das esquerdas na cultura portuguesa.

Isto é, pedindo ajuda a Walter Benjamim: depois do horrível xarope da “estetização da política que o fascismo pratica[va]”, passámos a engolir o xarope pouco melhor da “politização das artes”. 

Grosso modo, para aquela malta, o político precede e determina sempre o estético. Quase tudo era mais “socio” do que “cultural”, quase tudo era chato, quase tudo era um atraso de vida. 

E, claro, apareceu quem reagisse àquela estopada. Por exemplo, eu e os meus colegas de então na direcção do Cine Clube de Viseu, insatisfeitos com aquele panorama, tratámos de procurar e achar cinema que fosse “rebelde sem causa”, escolhemos filmes sem adjectivos nem politiquices. E eles estavam a chegar-nos de todos os lados: abençoados Almodóvar, Fassbinder, Cassavetes, Hitchcock, Pasolini, César Monteiro, ...


2. Ora, nestes dias que vivemos de polarização identitária e de guerras culturais, o “militante” de camisa de xadrez de há quarenta anos deu lugar ao “activista” tatuado de hoje que põe sempre um adjectivo qualquer à frente do seu produto artístico. Agora é sempre qualquer coisa “queer”, ou “feminista”, ou “verde”, ou o diabo a quatro. Um bocejo grávido de “virtude” e de “causas” e de “lutas”.

E o nosso jornalismo cultural parece conformado com este estado de coisas. Fazia-lhe bem abrir a página 10 da última edição do “Argumento”, a revista de cinema do CCV, e ler o manifesto de Luís Nogueira:

“A arte não tem de resolver os problemas da sociedade, deve enfrentar os seus próprios problemas;

— não tem de suprir carências e injustiças, deve superar as suas próprias limitações e fracassos;

— não tem de se medir pelo bem nem pelo bom, mas pelo belo e o sublime (e o grotesco e o feio);

— não tem de melhorar a vida, deve transmutá-la e celebrá-la (e, no limite, ignorá-la)”.

E este manifesto tem mais quinze parágrafos tão iluminantes e merecedores de atenção quanto estes quatro. 

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