Quem não puder falar que se cale
(Wittgenstein)
Tu andas muito preocupada
com tudo. E o teu mundo encolhe,
reduz-te ao brilho, alarga-te no corpo
e, assim, o corpo não dança,
dramatiza os passos e a escura
roupa. Sabe, quem te conhece,
que os gestos medidos têm ânsias
de horizontes, os olhos tristes
se abrem de explosão e infinito,
as mãos em que sempre te despenhas
desenham paisagens inteiras, lugares
secretos entre a areia e o sol, cabos
seguros de amarração em cais interditos
ao vulgar e ao soez, à lisonja fácil,
à pequena traição que te confunde
a serenidade com a angústia.
Tantas vezes apetece aconselhar-te! -
não espreites o futuro pela nesga
entreaberta, coragem frágil
em que desenhas o porte delicado,
a mansa, exaltada razão
dos argumentos, a loucura determinada,
escondida entre passado e presente,
imediatamente ages, agora
correm-te as lágrimas
e sabes muito bem porquê: chorar
faz bem, os teus fantasmas são carinhosos,
o que há-de ser é que não sabes,
bem sabes que o primeiro cigarro te mata
e ao segundo
já quase decidiste exactamente
o que fazer.
Mas não é esta canção
uma de conselhos. Atrevida canção
se fosse o que os teus lábios
não pronunciam, beijo reflectido
nos espelhos para onde te desorganizas.
O teu currículo de espelhos!
Sabe quem te conhece que és só
tu se amas; quando hesitas
onde não há razão para duvidar,
atenta de minúcias e segredos
entre as tintas e as paredes da casa,
da grande casa universal
que percorres, ora em bicos de pés
ora assente e sólida nos saltos
que te fazem mais alta;
quando te sentas e lês com compostura,
ávida de saber o que queres
esquecer na primeira fonte fresca,
no primeiro avião para bem longe,
no trilho meio selvagem da serra
da tua estimação e logo se entende
a respiração ofegante, as horas
que levas a escolher os sapatos,
logo se entende o medo aparente
de que a matéria seja imprópria
para tão sólida construção de alma.
Tu andas muito preocupada,
com nada. Com tudo o que do universo
significa ser improvável a felicidade.
Manuel Fernando Gonçalves
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