lírica, talvez burlesca e muito sentimental
ao Mário Cesariny de Vasconcelos,
que me ensinou a ler
[a]
em cima do corpo há uma jarra. dentro da jarra há
veneno. ao lado do veneno há por dentro uma lua. por baixo
da lua há um fundo de verdade.
[e]
debaixo de um poema neo-realista há um eu atado em
nós. por cima de um poema romântico há uma foda
monumental do eu consigo. antes de um poema moderno há
a masturbação da flor. por baixo de tudo isto há a mãe o pai
o vomitado leite da velhice e muitas quecas e queques em
pastelarias oníricas.
[i]
no cimo da escada há o outro. a meio da escada há um
porto. à frente da escada há o medo. no fundo da escada há
fantasmas na roupa. por dentro da escada há coisas a subir,
coisas a entrar, másculos a sair.
[o]
dentro de uma caneta há a alma da caneta. por cima da
caneta há um assassino de si. por baixo da caneta há merda
transfigurada.
[u]
dentro deste texto há onde eu. ao lado deste eu há
por onde eu. em cima deste texto há quem se esconde eu.
depois deste texto há eu sentado na retrete a corrigir as
provas e a achar que ainda não me exponho demasiado, e
que em vez de aprender a ler eu deveria saber escrever eu.
[ou]
não éramos todos mais felizes se vendesse eu partes do
meu corpo dentro do livro? em vez do livro que tem por
baixo o corpo? ou melhor: se eu vendesse o meu corpo para
ser comprado, metido na prateleira, e fazendo amor com os
outros livros fizesse, para o fim da história, alguma coisa de
verdadeiramente legível?
[ai]
anda comigo para dentro do texto porque eles afinal
querem ler-me contigo por baixo do texto. brinca aos
sentidos comigo ao perto do texto porque afinal eles querem
ver-me contigo dentro do texto. finge comigo por cima do
texto porque eu vivo de ti ao longo do texto.
[ui]
em cima do corpo há um corpo invisível. ao lado do
corpo há um corpo visível. por dentro do corpo há dois
corpos legíveis. a literatura é guiada por um morto.
[ei]
ditongo usado ao longo por dom dinis. quase nasal
dentro de camilo. interjeição ao fim de rima de pé quebrado
monárquica. perda da distinção fonológico-filosófica entre
esta e [eu] - nudista correndo através do texto.
[au]
por dentro de um homem há um feminista. em cima de
um homem há uma lista telefónica. ao lado de um homem há
o que não há.
[eu]
crítico literário, poeta a ver, ex-seminarista feliz,
prosador imperceptível, míope constante. usa a caneta a
meio do corpo ultra-lírico descontrucionista,
contorcionista sintático, doente corporal. julga-se bom, cita
velhinhas sem idade, esvazia a morte e tem medo de si como
palavra. se o encontrarem à noite, anda a escrever o labirinto
no corpo para ver se se conhece eu.
Pedro Sena-Lino
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