“Jane Roe” versus Henry Wade *

* No Jornal do Centro — aqui

1. No dia 22 de Janeiro de 1973, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu a favor de “Jane Roe”, moradora no condado de Dallas - Texas, que “desejava interromper a sua gravidez com um aborto realizado por um médico competente e licenciado, sob condições clínicas seguras”. Foi o celebérrimo caso “Roe versus Wade” que descriminalizou a interrupção voluntária da gravidez nos Estados Unidos. 

O Supremo Tribunal só pode decidir sobre casos concretos, pelo que “Jane Roe” existiu mesmo, tinha era outro nome, chamava-se Norma McCorvey, ...

AKA Jane Roe

... e era filha de pais muito religiosos que não lhe ensinaram nada sobre reprodução e sexualidade. Norma ficou grávida pela primeira vez aos 17 anos (deu à luz Melissa que entregou à mãe para criar), a seguir teve mais uma menina que deu para adopção, e, aos 21 anos, não queria levar até ao fim a terceira gravidez. Por isso, aceitou que o seu “caso” fosse presente aos tribunais sem perceber que, de qualquer maneira, nunca seria resolvido a tempo para lhe evitar a terceira filha, que também foi dada para adopção.

“Jane Roe”/Norma McCorvey foi uma desgraçada, trabalhou em limpezas, vendeu drogas, às vezes o corpo. O escritor e jornalista Joshua Prager fez-lhe uma biografia com o título “The Family Roe: An American Story”, um tijolo de 655 páginas publicado no ano passado e que mereceu uma excelente recensão na London Review of Books, de onde transcrevo tudo o que neste Olho de Gato aparece entre aspas.

Norma viveu amargurada com a perda das filhas e com as feministas que se aproveitaram do seu caso para terem boas carreiras cívicas e políticas e que não quiseram saber dela. Talvez para se vingar, passou para o outro lado da trincheira e militou contra o aborto. Já perto do final da vida, nova viragem que fez manchetes em todo o país: “Jane Roe” reconheceu que “se uma jovem quer fazer um aborto – tudo bem, não é nada demais”. 

Norma McCorvey morreu em 2017, duas semanas depois de Trump tomar posse, não sem antes ter adivinhado que “aquele pequeno Richie Rich” ia mudar a maioria dentro do Supremo Tribunal e  “tornar o aborto ilegal novamente”. 

Assim aconteceu há mês e meio, no funesto dia 24 de Junho de 2022, em que o Supremo Tribunal anulou “Roe versus Wade”. Agora os estados mais conservadores vão infernizar a vida das mulheres com uma gravidez indesejada. E elas vão resistir. E vão ganhar. No Kansas, um estado trumpista, já aconteceu: as mulheres acabam de ganhar um referendo com uma margem de 20%.


2. “Roe versus Wade” aguentou-se quase meio século mas esteve sempre debaixo de fogo.

No princípio, a luta contra o aborto foi um exclusivo dos católicos. As várias confissões protestantes não se meteram nessa guerra por duas razões: porque a sabiam perdida (os tempos eram de avanços nos direitos civis e não de recuos como agora) e porque “70% dos pastores baptistas 'apoiavam o aborto para proteger a saúde mental ou física da mãe'”.

Entretanto, nestas cinco décadas, a igreja católica norte-americana foi perdendo força por causa dos sucessivos casos de pedofilia, enquanto os evangélicos ganhavam músculo financeiro, mediático e político. 

Além disso, o mercado da salvação das almas esteve, e está, em profunda alteração. Em todo o continente americano, do Alasca à Patagónia, e também em boa parte de África, as igrejas hierarquizadas de comando único, como a Católica e a Anglicana, estão a perder fiéis para confissões religiosas de auto-organização comunitária, franchisadas e flexíveis, onde avultam as pentecostalistas. 

Estas igrejas não se ficam só por assuntos de Deus, imiscuem-se também nos assuntos de César, elegem e fazem eleger políticos radicais de direita, veja-se o caso de Bolsonaro, colocam em postos-chave gente sua, vejam-se os juízes beatos que acabam de dar este golpe nos direitos das mulheres norte-americanas.

Na Europa, é visível um aumento da implantação evangélica que, para já, ainda não tem muita expressão política. Em Portugal, o Chega poderá vir a ser-lhe apetecível.

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