Tão lento quanto possível*

* Hoje no Jornal do Centro aqui

Em meados dos anos de 1980, John Cage escreveu, numa partitura de oito páginas, a peça Organ²/ASLSP (as slow as possible — tão lento quanto possível), em que deliberadamente não há indicação de velocidade para a execução, essa escolha é deixada a cada intérprete.

Sendo assim, as metragens desta música experimental têm uma amplitude extraordinária: 

— estou a escrever esta crónica ao mesmo tempo que oiço uma versão de oito horas do organista Graeme Shields (tenho fundadas esperanças que não precisarei de a ouvir toda, muito antes acabo este Olho de Gato);

— contudo, pode dizer-se que Graeme foi apressado; comparemos as suas oito horas com as 14 horas e 56 minutos em que Diane Luchese esteve a meter ar num órgão numa universidade de Maryland, no dia 5 de fevereiro de 2009; este espectáculo é referenciado como “a mais longa performance musical documentada feita por um só ser humano.”

  

Chegados aqui — e como a conversa é como as cerejas — em matéria de maratonistas musicais, Viseu tem para a troca e pede meças: nos Jardins Efémeros de 2016, a grande pianista Joana Gama tocou Vexations, de Erik Satie, no edifício da Escola Profissional Mariana Seixas, das 13H30 do dia 8 de Julho até às 4h30 do dia seguinte. Foram aproximadamente 15 horas. Joana fez uma maratona equivalente à de Diane, ou talvez maior.


Regressemos a John Cage.

Um grupo de músicos e filósofos decidiu elevar a lentidão do compositor para um outro patamar: como um órgão pode fazer soar uma nota indefinidamente, instalaram na igreja de S. Burchardi, em Halberstadt, na Alemanha, um instrumento especial, sem teclado (para mudar o som, tiram-se, mudam-se ou acrescentam-se tubos). Organ²/ASLSP está a ser tocada ininterruptamente desde 5 de Setembro de 2001 e assim continuará até 5 de setembro de 2640 — durante 639 anos. 

Quando há uma mudança de acorde — todas elas estão programadas — junta-se sempre muita gente naquela igreja. A última vez que isso aconteceu foi em 5 de Setembro de 2020. Acha-se facilmente a “cerimónia” na Internet, com o público devidamente mascarado por causa da covid. Até 2640 muitas mais pandemias hão-de vir.

Numa parede em Lagos — fotografia Olho de Gato

É claro que tudo isto é estranho. A música não é o habitat natural deste caracol. Quem tem uma preferência especial por este nicho ecológico “tão lento quanto possível” é a nossa justiça, são os políticos que fazem as leis, são os operadores judiciais que a aplicam. 

É caso para perguntar: qual destas duas longevas realizações do génio humano vai acabar primeiro, o processo Marquês ou a performance naquela igreja de Halberstadt?

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