[Fúria]

Fotografia de Heather M. Edwards

Tenho por norma esta apocalíptica forma de ser pedra em chão molhado; e nada me incomodam os pés dos outros, os joelhos as mãos os rostos dos outros quando casualmente em mim resvalam. Tenho uma cidade em cada perna, e em cada coxa o tráfego, a espera, a ira do taxista e uma mão remendada abusando da paragem forçada a quem pragueja desprezo à mais alta velocidade. Tenho por peito a praça onde homens e mulheres circulam, e sei de cor cada gesto só pela vaidade de dizer: sou de tudo.

O tudo tomando café, saindo e entrado, indiferente à rua que desagua na minha língua, desconhecedor deste registo diário que me rege a correnteza do rosto ao negar lume a um desconhecido. Nego, nego tudo; e há sinos que tocam apenas nas minhas costas, santos de olhar baço a que somente o meu olhar dá luz, homens de todos os dias que esquecem beijos a cada janela, sem saberem que são minhas as portadas que lhes devolvem este sem toque de ser pedra em torrência: tempestade de granito. Batendo fúrias contra sobretudos negros, mãos quietas e esse cabelo escuro procurando proteger-se do frio.

Nada possuo de terramoto, ocasionalidade esporádica da terra enquanto geme desamores ao relento de um céu suspenso. E, se me perguntares quem sou, para onde vou, dir-te-ei: sou Outono, Inverno camuflado de vã promessa, de vã incerteza, vou para o tempo que é da contabilidade excessiva da queda dos ramos. Sou do tempo como da trovoada, e se tenho por língua um raio despedaçando nuvens, nada esperes que não seja a certeza de eu fazer dia em noite cerrada, a mais perfeita forma de romper o silêncio.
Beatriz Hierro Lopes





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