Levanta-te, não chores
Fotografia de Marc Riboud |
Levanta-te, não chores.
Tens de saber que às vezes é difícil
matar o que nos mata,
ir aguçando o gume do cutelo
e movê-lo depois, logo em relâmpago,
até que o monstro seja degolado
e não fique sequer uma gota de sangue,
da cicuta voraz que lhe corria
plas veias tão geladas, sob a pele
que terias beijado quase a medo
em busca de um sabor que fosse o fogo
e o ar e a água,
mas era só veneno adocicado,
daquele que vicia sem parecer viciar
e nos deixa sem cura a vida inteira.
Levanta-te, bem sabes,
desde o tempo dos contos infantis,
que todo o mal procura disfarçar-se
em rostos como aquele,
na perfeição volátil desse abismo
a que chamam beleza e vai ardendo
em lânguidos sorrisos e olhares
feitos de pura seda, seduzindo
espíritos como o teu,
demasiado inocentes ou perversos
para desconfiar da eternidade
ou para resistir à luz fosforescente
que, obedecendo às leis da natureza,
sempre soube atrair até à morte
o alucinado voo das borboletas.
Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
de apertar o gatilho as vezes necessárias
para que tudo morra - os estertores
da tua alma ou do teu corpo
mesmo assim doem menos, acredita,
que o travo torvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
os mil e um poemas
que haverias de ler, talvez sem esforço,
à flor daquela face, não hesites,
porque a felicidade tem um preço
e os versos, quaisquer versos, são apenas
a memória infiel deste vento que move
as árvores lá fora enquanto é noite,
mas que às primeiras horas da manhã
deixará elevar-se um nevoeiro
tão espesso e esbranquiçado, que o amor
será nesse momento uma palavra baça
que nada te dirá, a ti ou a ninguém.
Fernando Pinto do Amaral
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