Amnésias *
* Texto publicado no Jornal do Centro, há cinco anos e meio, em 9 de Junho de 2005
1. Morreu o disco rígido do meu computador. O meu computador ficou amnésico. Desmemoriou. Manteve a ram, a memória volátil, mas perdeu o arquivo. Num segundo perdi o conforto dos “meus” sites favoritos, dos “meus” blogues de visita diária, das minhas fotografias, das minhas músicas, dos meus documentos, os da política e os outros.
Apesar de tudo, esta avaria podia ter sido uma catástrofe muito pior. É que “só” perdi dois meses de trabalho, já que tinha feito uma cópia de segurança, em finais de Março. Consegui recuperar o grosso da informação.
(...)Imagem daqui |
2. A história é muito conhecida: a 7 de Abril, apareceu em Sheerness, uma cidade costeira inglesa, um homem aparentando 30 anos, vestido de fato e gravata, completamente encharcado e que não dizia uma palavra.
O homem não era, e continua a não ser, identificável. Existe no caso alguma premeditação já que as etiquetas da roupa que usava estavam todas cortadas. Quando lhe puseram um papel à frente, ele desenhou um piano com todos os pormenores. Levado junto de um, tocou horas seguidas, revelando-se um bom pianista. Passou a ser conhecido como “O Homem do Piano”.
“Vulnerável”; “assustado”; “traumatizado”; “em perigo”: são as expressões usadas pelos especialistas do hospital em que ele foi recolhido.
Algures qualquer coisa na ram ou no disco rígido do “Homem do Piano” estalou. Isto se a sua amnésia for real. Porque pode não ser.
3. A amnésia é um bom tema para histórias.
Um dos melhores filmes que vi ultimamente sobre este assunto é Memento. Conta a história de Leonard Shelby, que perdeu a memória quando lhe assassinaram a mulher. Leonard deixou de poder guardar informação a partir de então. Lembra-se bem da sua vida anterior mas a sua memória agora não processa informação de curto prazo. Só sabe que se tem de vingar, embora não consiga fixar o nome de ninguém, nem nenhuma circunstância da sua vida actual.
Usa uma polaróide para guardar a imagem visual das coisas. Chega a um parque de estacionamento e só pela fotografia é que consegue saber que o seu carro é um Jaguar. Quando entra nele, nunca se lembra que o vidro da janela esquerda está partido, mas guia perfeitamente porque aprendeu isso antes do trauma.
Tem que escrever as informações mais importantes no corpo para não as perder. No fim do filme, o corpo tatuado de Leonard parece um mapa das estradas.
A história é genial e a maneira como é contada tira-nos a respiração.
4. «E o senhor, como se chama?»
«Espere, tenho-o debaixo da língua.”
“Assim começa o último romance de Umberto Eco, um exercício de reconstrução do passado de Yambo, alfarrabista de profissão, a quem um acidente neurológico implausível apaga (delete!) a biografia.”
Acabo de transcrever o início duma recensão magnífica que João Lobo Antunes publicou no suplemento literário do Público, do último sábado, sobre “A Misteriosa Chama da Rainha Loana” [Difel, 25 euros].
O livro de Eco, mais do que sobre o esquecimento, preocupa-se é com o processo de recuperação dos dados perdidos no nosso disco rígido. É, evidentemente, o que importa em matéria de amnésias. (...)
5. Em 2002, a subida do IVA de 17 para 19% foi um erro. Em 2005, a subida do IVA de 19 para 21% é mais do que um erro: é amnésia política.
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