Portugal, quero falar contigo

Cutileiro a enchapelar D. Sebastião 

Daqui — 18'51''


Portugal quero falar contigo.
Não faças esses olhos de quem viu um lobisomen. Achas esquisito, porventura, que queira falar contigo?
É que tenho coisas muito importantes para te dizer e só agora arranjei a coragem suficiente.

Portugal: eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos.
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais e nunca mais voltasse?
Às vezes quase chego a acreditar que é tudo mentira, que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente.

Portugal: não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional, que os meus egrégios avós me perdoem.
Ontem estive a jogar ao poker com o Velho do Restelo. Ele anda na consulta externa do Júlio de Matos. Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas.

Portugal: eu se tivesse dinheiro comprava um império e dava-to. Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir.

Portugal: vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém. Sabes, estou loucamente apaixonado por ti.

Pergunto a mim mesmo como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu mas que tem um coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal e o corpo cheio de pontos negros para eu poder espremer à minha vontade.

Portugal estás a ouvir-me? Eu nasci em 1957, Salazar estava no poder, nada de ressentimentos.
O meu irmão estava na guerra, tenho amigos que emigraram, nada de ressentimentos.
Um dia bebi vinagre, nada de ressentimentos.

Portugal: ia propor-te um projecto iminentemente nacional: que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que o Camões lá deixou.

Portugal: sabes de que cor são os meus olhos? São castanhos como os da minha mãe.
Portugal gostava de te beijar muito apaixonadamente na boca.
Jorge de Sousa Braga



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