Bufos*

* Hoje no Jornal do Centro, nas bancas e aqui

1. A “História da Inquisição Portuguesa (1536-1821)”, de Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva (A Esfera dos Livros, 2013) é um trabalho monumental sobre aquela instituição tenebrosa da igreja católica, nas palavras de Eduardo Lourenço, “o mais presente, obsessivo e enigmático episódio da nossa vida colectiva”.

Segundo os dois autores, aqueles três séculos da nossa história ainda reverberam “em certas dimensões da vida institucional, nos costumes, modos de ser, pensar e falar”.

Reparemos: o número de denúncias foi “infinitamente maior do que o número de processos”, isto é, os conflitos sociais passaram “de uma forma continuada” pelo “mecanismo da denúncia”. A inquisição enraizou “pela primeira vez em todo o país este sistema” de delação, sistema que, valha a verdade, nunca mais desapareceu.


A polícia política salazarosa também dependia dos bufos. Esta semana, Maria José Oliveira, na rede social X, descreveu o caso de “uma mulher de meia idade, solteira, residente numa cidade perto de Lisboa, onde tinha prestígio social” que “foi informadora remunerada da PIDE”, “durante os anos 60”, através de “cartas endereçadas a moradas em Peniche, sempre muito detalhadas e envolvendo pessoas distintas”. Aquele estupor “ganhava 400 escudos por mês”, de que “passava sempre recibo”. Depois do 25 de Abril, esteve presa “um ano e tal em Caxias” e, depois, “nos anos 80, quando foi pronunciada para julgamento, já não estava no país”.

Um clássico de Luís Afonso achado aqui

2. Apesar de tudo, durante o negrume inquisitorial e salazarento, a bufaria era uma actividade envergonhada, não assumida.

Agora, chegados ao século XXI, há uma nova espécie de criaturas: os bufos gabarolas que alardeiam as suas perseguições e os seus cancelamentos. Estes chibos — em regra ou muito wokes ou muito fachos — acham-se merecedores de medalhas de bom comportamento. É que, nas lutas identitárias, a denúncia dá status, quer a denúncia activa (alvejar alguém da tribo inimiga), quer a passiva (ser flagelado pela tribo inimiga).

Uma coisa não mudou: então e agora, a bufaria era, e é, feita por gente cheia de boa consciência. Durante a inquisição, era gente contra o “pecado” (e “pecado”era tudo o que desse jeito), agora é contra o “discurso de ódio” (e “discurso de ódio” é tudo o que der jeito).

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