Sótão

Fotografia Olho de Gato



1

Tens boa memória e conheces os clássicos, mas
há coisas no sótão de que deves desfazer-te,
vestígios de uma vida com rotinas e limites:
a campânula de vidro, o velhinho bumerangue
(que de há muito, se lançado, não regressa à tua mão)
e até o próprio peito, que em tempos trazias
bem aberto a lamechices, cabeça-de-cartaz
no palácio da magia. Por que não me dás ouvidos
e te perdes noutro lado? Uma galáxia distante.
Não há sítio mais seguro para guardar segredos íntimos.


2

Nessa caixa, por exemplo, ninguém mexe
há vários anos. Tem os arcos e as flechas
de brincar, um conjunto de apêndices
capazes de milagres. A memória, todavia,
tem um fundo movediço, uma espécie de alçapão;

abandona-te à primeira, deixa-te a falar sozinho
nas alturas mais estranhas. E sem ela
vens parar outra vez ao tempo errado, alvejado
pelas costas em cima do cavalo. Cowboy,
cowboy, quem é que tem agora a arma?


3

Cordas, roldanas, engrenagens,
a base teórica da elevação das coisas.
Demorou algum tempo, deu trabalho.
Foi talvez a ascensão mais perigosa
que fizemos, com as botas de borracha
e os sacos das vindimas equipando
os astronautas do futuro. Uma vez,
há muito tempo, outras crianças.
Entretanto, é arrepiante ver o estado
a que chegámos. Sem o livro dos feitiços,
não podemos fazer nada.
Vítor Nogueira


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