Taquicardias, nas escadarias de Odessa

 De  um longo poema-reportagem cujo curso se finou, à beira de um ano de guerra:

O Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein (1925)


3   (taquicardias, nas escadarias de Odessa)

Na minha experiência as muralhas 

da China são porosas os pulmões 

colapsam e as roseiras atraem

ratos aos jardins da insídia. 


Não são alegações e rumores 

de má conduta. Desde os idos 

de Fevereiro, nada está a salvo.

Basta olhar: Odessa está às escuras, 


clandestina é o que é. Num silvo, 

o míssil que persegue a lascívia 

na transpiração dos mortos esfacelou 

as centrais eléctricas da cidade.


A slight case of murder. Entre o azul 

e o blue. A letra «d» de Odessa serviu de gatilho,

disparou o «e» e alongou os ésses, em sú- 

bita taquicardia, na famosa escadaria


que, perdida em rotinas, fazia flexões de braços 

diante do mar e viu o seu bulício, esse luxo 

de urbe prenhe pela literatura e o vodka, 

interrompido, no baque do cego 


cuja palma acordou no favo a ferroada.

Sacos de areia protegem a estátua 

de bronze do Duque de Richelieu 

após ter feito breu no coração da criança


que a meio do escorrega foi defenestrado.

E também a surpreendida Natasha 

julgava o apagão um efeito 

do seu langoroso orgasmo, 


antes de, chiante, o grifo

de vidro lhe ter ido devorar 

adrede na omoplata esquerda 

o chilreio dos rios.


Odessa, a cidade natal de Akhmatóva 

é agora uma cópia dactilografada 

pelo próprio Inferno (diga-se, 

um escritor de segunda 


a quem recorrem os tiranos).

É tramado como no interior de nós 

desabrocha o exterior do mundo; 

embora na sirene de um navio


ressoe infrangível a evasão

esse postigo não nos resguarda 

das marcas de sangue nos umbrais. 

Fujamos, meu caro leitor, do saber p’lo 


saber, da poesia que só se sensibiliza

com tulipas & chaminés acomodadas

ao ranking dos subsídios académicos

- fujamos da podolatria entre as abelhas.


O poro não vive à toa, há-de um corpo 

ter, tela em que respire; o rio 

que é o livre curso de uma pergunta

abafada pega numa canoa e sitia o mar. 


E ocorre-me de repente O Fado da Censura

de Pessoa: «Há um campo lamacento 

Onde se dá bem o gado; 

Mas, no ar mais elevado, 


Na altura do pensamento, 

Paira certo pó cinzento, 

Um pó que se chama Crítica. 

A Ideia fica raquítica 


Só de sempre o respirar. 

Por isso é tão mau o ar 

Neste campo da Política»,

e algo se me embarga, neste tempo turvo.


O vento não estacava em cada degrau 

da escadaria em que Einsenstein 

rodou a cena mais famosa

d’ O Encouraçado Potemkin, 


mas agora, num golpe de rins, ex-

traviado o fantasma do carrinho do bebé

e vendo como espirra o nariz do míssil, 

trava o passo e vela o horror em rodízio


que muda uma cidade em sudário.

Nem o vento escapa a lembrar-se 

duma certa cadeira de barbeiro,

e cede à democracia do medo – 


invenção soviética que o novo czar 

assertoou nos fatitos dos seus súbditos; 

temente tenente aburguesado, o vento sonha 

agora acoitar-se como o cuco nos relógios, 


e trava o passo a cada degrau

da centenária escadaria Richelieu.

Em Odessa, berço de Akhmátova,

as unhas de Deus azedam as laranjas.

António Cabrita


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