Um cinturão de bombas e dois desgostos*

*No Jornal do Centro aqui

Fotografia daqui
Manuel António Pina (MAP) nasceu em Novembro de 1943 e morreu em Outubro de 2012. Foi um bom jornalista, um cronista admirável e um poeta de eleição. Gostava de gatos. E de gatas, evidentemente.  

Depois de ter recebido o Prémio Camões em 2011 — merecidíssimo deva-se dizer —, MAP foi muito homenageado e, claro, teve que falar de si em muito lado. Uma dessas vezes foi ao jornal I., numa entrevista em que se saiu com a seguinte frase explosiva: “A vontade que tenho era pôr um cinturão de bombas e rebentar com essa malta toda”.

Esta entrevista é excepcional, tanto nas perguntas, a cargo de Nuno Ramos de Almeida, como nas respostas inesperadas, livres, desconcertantes. Li-a na altura da sua publicação, quando quem mandava no país eram os credores, era a troika — daí aquela ironia “jiadista” do poeta.

Agora, na preparação deste Olho de Gato, tive alguma dificuldade em achar esta entrevista porque já não está no arquivo do jornal. O costume. A informação na internet é muito volátil — lembremo-nos do que acaba de acontecer ao Expresso.

MAP, durante a conversa, ocorrida oito meses antes da sua morte, contou várias e deliciosas histórias, incluindo algumas com políticos, criaturas que ele descreve como “umas putas velhas”.

Transcrevo para aqui um episódio do tempo dele da tropa, ainda durante o salazarismo: “Na guerra estávamos na Acção Psicológica. Éramos dez tipos e eram quase todos do piorio, só havia três tipos que não eram fachos. Nós dez contestámos uma prova física que contava para a classificação e combinámos chegar todos ao mesmo tempo. Então fizemos a corrida em passo de cruzeiro, e 100 metros antes da meta o ****** arranca a grande velocidade e rompe o acordo, o filho da puta, para ver se ganhava uns pontos extra. O azar dele é que arrancou a 100 metros e nós éramos todos mais ágeis que ele, está a ver a figura dele?, e ultrapassámo-lo todos e ele ficou em último lugar.”

Quer saber quem é o ******? Posso dizer-lhe que é um dos políticos que mais eleições ganhou em Portugal. Ainda se acha esta entrevista em alguns blogues. Vou também publicá-la hoje no blogue Olho de Gato. [Ver abaixo]

Primeiro desgosto

O sorteio de juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal, o célebre Ticão, funciona pior que uma raspadinha num quiosque de bairro. Aquilo é uma tristeza.

Quando julgávamos que a nossa justiça já tinha batido mesmo no fundo, aparece sempre alguém a mostrar que estávamos enganados, aparece sempre alguém a escavar aquele buraco ainda mais para baixo.

Segundo desgosto

Para que esta crise política estúpida e escusada não fosse um completo tempo perdido, os partidos podiam apresentar propostas eleitorais capazes de inverter a decadência demográfica, social e económica em que caiu o país. Mas já se percebeu que vai ficar tudo na mesma, a bazuca vai ser estraçalhada, o pântano vai continuar.

O país está a perder posições em todos os rankings. Em 2009, o nosso PIB per capita, expresso em paridades de poder de compra, era 83,1% da média europeia, agora é de 76,4%. Os países do leste que aderiram à UE em 2004, 2007 e 2013, ou já nos ultrapassaram ou preparam-se para o fazer.

Em Portugal, só os boys e os rentistas é que se safam, especialmente se estiverem perto do poder em Lisboa.

Os líderes partidários e os jornalistas e os opinadores e os académicos, naqueles debates nas televisões, naqueles debates sobre os debates nas televisões, estão mesmo a falar de quê?

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Entrevista de Nuno Ramos Almeida a Manuel António Pina, Jornal I., 18 de Fevereiro de 2012

  “A vontade que tenho era pôr um cinturão de bombas e rebentar com essa malta toda”

Tem um pensamento torrencial. É difícil não sucumbir ao encanto, ao humor, à inteligência e às histórias. Consegue defender o cepticismo da forma mais apaixonada, tornando-o quase o seu inverso. Não acredita em milagres, mas faz tudo para que eles aconteçam. A conversa começou pouco religiosa sobre a relação entre os intelectuais e os políticos. Já não me lembro da primeira pergunta, mas a primeira resposta foi a que se segue.


Um dia o Sócrates telefonou-me, eu tinha escrito uma crónica em que falava das declarações do então treinador do Benfica, Camacho, que garantia que o clube jogava bem mas não metia golos. Relembrei que o objectivo do futebol não era “jogar bem”, mas meter golos, nem que seja com a mão. Comparava a situação com a do governo, dizendo que estava tudo óptimo, com o pequeno problema de não funcionar. Estava em casa e o telefone tocou. Atendi – ainda bem que fui eu, a minha mulher teria decerto descomposto o tipo a pensar que era um brincalhão – e escutei uma voz: “Daqui José Sócrates.” Ainda na dúvida se não era alguém a gozar comigo, ouvi: “Venho protestar consigo na minha qualidade de benfiquista e já agora de socialista”, e convidou-me a ir almoçar a S. Bento. Vou-lhe dizer uma coisa, ele surpreendeu-me. Olhe que a certa altura até me citou o Ruy Belo, e apropriadamente, com uma citação certa. Estava acompanhado daquele tipo que vinha do SIS, o Almeida Ribeiro, a partir daí telefonava–me muitas vezes. Eu sei que ele fazia isso a várias pessoas, porque quando morreu o Eduardo Prado Coelho li uma declaração em que ele dizia: “Era uma grande pessoa, uma grande figura, e até tinha um almoço marcado com ele.” Garanto-lhe que aquilo funcionava. Continuei a dizer o que pensava, mas durante uns tempos não escrevia “José Sócrates”, mas “primeiro-ministro”, para desfulanizar, como dizia o António Sérgio. Começámos a afastar-nos quando ele, num discurso que fez no Norte, em 2008, no início da crise do subprime, garantiu que os portugueses deviam estar seguros de que a Segurança Social não especulava com o dinheiro das pessoas como as economias de casino. Eu com aquele péssimo hábito que tenho de jornalista, fui confirmar as coisas, consultei o site da Segurança Social e vi que 80% dos fundos estavam aplicados em acções. Ele tinha dito expressamente que não se aplicava dinheiro em acções e não era verdade.

Os políticos, além de tentarem seduzir os intelectuais como o Manuel António Pina, também os castigam?
Vou dizer-lhe uma coisa: é mais comum a sedução. O único político que me lembro de me mostrar algum desagrado foi o Sampaio. Senti isso depois de escrever uma crónica quando ele foi a Barrancos, durante a guerra sobre as touradas de morte. É preciso lembrar que foi a posição dele que ajudou muito a legalizar aquela excepção, dizendo, em Barrancos, que o povo quer as touradas de morte. E eu escrevi uma crónica citando o Mário Cesariny, dizendo: “Vem ver o povo que lindo é/ vem ver o povo dá cá o pé.” Passado uns tempos atribuíram-me uma condecoração. Fui lá recebê-la, em Guimarães, pensei em não aceitar delicadamente, mas a minha mulher disse-me que fosse. A minha mulher é fantástica, deve ser a única pessoa que nunca escreveu um poema na vida, nunca tentou escrever “alma” a rimar com “calma” e “água” com “mágoa” e apesar de não gostar de poesia faz-me uma espécie de edição. Às vezes escrevo um poema e ela diz-me o que acha, e normalmente tem razão. E sobre eu não querer aceitar a condecoração disse-me: “Lá estás tu a pôr-te em bicos dos pés.” E tinha razão. No dia aprazado, Sampaio pôs-me o penduricalho e eu agradeci. E ele disse-me assim, com aquela cara severa que o homem tem, “não me agradeça a mim, agradeça ao Estado”. E eu disse-lhe: “Ó senhor Presidente, mas como não tenho o Estado à mão, agradeço-lhe a si.”

Está um bocadinho desencantado?
Estou muito. Eu não tenho nenhuma fé. Mas escrevi recentemente uma crónica chamada “O que fica depois do que se perde”, sobre o filme “A Palavra”, do Dreyer. É uma história sobre a fé. Conta a vida de um luterano que tem três filhos, o mais velho é ateu, o segundo tem uma loucura mística, convence-se que é a reencarnação de Cristo, e o terceiro, o pai tenta casá-lo com uma rapariga de outra seita protestante. Todos consideram louco aquele que se julga Cristo, eu até escrevi na crónica loucura entre aspas, para acrescentar uma nota em que dizia que sou céptico, mas sou céptico em relação ao próprio cepticismo, mas depois acabei por tirar as aspas porque já não tinha espaço para as explicar. A certa altura do filme, a mulher do filho mais velho, ateu, morre, e as duas crianças pedem ao tio que ressuscite a mãe, porque têm aquela fé pura e sem limites acreditam nisso – é das cenas mais comoventes da história do cinema – e ele ressuscita-a. As únicas pessoas que não ficam surpreendidas são as duas crianças. É curioso que eu que não tenha fé nenhuma, mas quando vejo coisas daquelas sinto uma espécie de melancolia. É a sensação que têm os amputados que sentem a perna que já não têm.

Não acha que esse desencantamento é fruto de um sentimento de impotência? 

Muitos textos seus fazem esse contraponto entre as esperanças de uma geração dos anos 60 e o abastardamento da maioria dessas pessoas no presente…

Isso não gera naturalmente impotência, a não ser nos impotentes. Eu cito muitas vezes uns versos do João Cabral Neto, na “Morte e Vida Severina”, que dizem assim: “Muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás.” E eu sou uma pessoa que atira as mãos para a frente. O meu cepticismo é mais em relação ao ser humano e sobretudo em relação a todos os tipos de optimismo. Às vezes inverto aquela máxima e digo que o optimista é um pessimista mal informado. Eu sujo as mãos, mas faço-o descomprometidamente. Estávamos a falar da descrença, mas eu sinto-me completamente revoltado. Às vezes digo: a vontade que tenho era pôr um cinturão de bombas e explodir com essa malta toda. Quando vejo tratar mal alguém mais vulnerável, um velho, uma mulher, uma criança ou um animal, sou capaz de fazer mal…

Mas não acha que, como no filme, é preciso acreditar para que as coisas aconteçam?
Não acredito em milagres. Digo que aquilo é muito bonito, é belo. E senti a necessidade de pôr um parênteses: a beleza é o rosto mais jubiloso da verdade. Não da própria verdade, mas do seu rosto. Quanto à verdade, tenho dúvidas que exista. Isso da beleza não é uma constatação minha. No outro dia estava a ver uma entrevista do Prémio Nobel da Física Steven Weinberg, em que ele dizia que a teoria das cordas era tão bonita que tinha de ser verdadeira. É um físico que diz isto, não é o místico. Sei que a literatura e a arte são formas e não a confundo com a realidade prática. Já tenho dito que sou um pouco religioso, no sentido mais estritamente literal da palavra.

A poesia não é uma forma de religião. Não é uma negação da realidade?

Não necessariamente. No outro dia disse uma coisa com que concordo, nem sempre isso me acontece. Estive a reler uma entrevista minha à “Ler”, e exclamei: “Eu disse isso?” Fiquei contente. Achei que tinha dito uma coisa acertada. Nem pareço eu. A propósito do Joaquim Manuel Magalhães falar do regresso ao real, disse: “Mas há alguma coisa que não seja real? Tudo é real. O problema é que há muitas realidades. O sonho é tão real como estar acordado.” De facto, nós sentimos efeitos físicos dos sonhos, dos desejos, dos medos, das esperanças. É tudo real. Digo-lhe mais, os mitos – e não estou a falar dos mitos gregos, que são arquétipos da realidade humana – são forças reais: não há nada mais mobilizador que um mito. O mito da greve geral dos trabalhadores é mobilizador. O mito de uma sociedade sem classes também mobilizou milhões de pessoas ao longo da história.

Nas suas crónicas fala repetidamente da expulsão dos poetas da polis e opõe os economistas aos poetas. O que significa isso?
O economista no sentido em que eu o trato são uma espécie de núncios e arautos dos mercados. Escrevi uma crónica contra esses economistas, os que em geral têm acesso às televisões. Não são todos. Eu frequento um blogue de economistas que se chama Ladrões de Bicicletas, em que se fala de outra forma. Curiosamente, o título não remete para a economia, mas para a arte e o cinema. Não sou tão insano que não saiba que as realidades económicas existem, o que me parece é que lá por serem realidade não são necessariamente verdadeiras.

É possível fazer poesia nos tempos da troika?
Acho que se calhar até é obrigatório. Tenho um amigo que está a fazer um livro de poemas sobre isso, o João Luís Barreto Guimarães. Por acaso a minha poesia não é muito desse género, mas no outro dia coloquei num poema, aqui nuns caderninhos [procura o dito], meti qualquer coisa sobre aquela frase do Passos Coelho sobre a democratização da economia, a propósito da precariedade da existência e do absurdo. Compreendo que os seres humanos procurem sempre um sentido ou um destino. É duro de mais saber que se existe para nada. São os grande problemas filosóficos. Aquelas perguntas que nos fazem os nossos filhos: onde estava eu antes de ter nascido? O que nos acontece depois de morrer? São esses os grandes problemas filosóficos a que todos procuram responder: de onde vimos e para onde vamos. Toda a arte e toda a literatura reflecte isso. O Borges diz que toda a arte se resume a dois temas: o amor e a morte… e o tempo. O amor através do sexo está ligado ao abismo antes e a morte ao abismo do ser do depois, ao seu desaparecimento. São uma espécie daquilo que os astrónomos chamam horizontes opacos, a partir dali não se pode ver o antes e o depois. É natural que os homens se interroguem. Toda a arte, como toda a filosofia, são interrogativas.

Manuel António Pina opõe o poeta ao economista, mas também a infância à idade adulta, em que a infância aparece como um sítio, quase um paraíso perdido…
Eu sei. Nós quando somos pequenos queremos ser grandes rapidamente. Mas na infância os poetas invejam a capacidade de ver pela primeira vez. A poesia é também uma forma de olhar de novo. A infância é mítica porque é a capacidade de olhar profundamente pela primeira vez. Para mim, é a melancolia de um momento mítico – mítico até porque parece que já nascemos com a estrutura para a linguagem no cérebro – da relação com as coisas sem intermediação da linguagem. A linguagem afasta-nos do mundo. Nós já nascemos como seres condenados à linguagem, como provam os trabalhos do Chomsky, mas tenho um poema num livro, “Lugares da infância”, em que se fala daquela possibilidade de ter uma relação com o mundo sem essa intermediação. No meu caso a ideia de infância é uma busca desse momento inicial sem nenhuma palavra e nenhuma lembrança em que nós somos também mundo.

Há uma certa ironia em ser oficial de uma profissão, a de jornalista, em que se faz a mediação com os outros através da linguagem…
Mas eu dou-me bem com as duas situações. Há uma coisa que me seduz muito, é o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Sou um leitor apaixonado de livros de divulgação, quer sejam sobre a astronomia, quer sejam sobre a física de partículas. Leio muitas coisas dessas. Sabe porquê? Porque são aqueles momentos em que a nossa linguagem é posta em crise. Digo às vezes, simplificando, que, se a malta que anda a meter heroína lesse um livro de astronomia, sentiria uma pedrada muito mais forte. Imaginar uma distância daqui até Alfa do Centauro, vários anos-luz, é como calcular a nossa dívida pública, é difícil de abarcar. É curioso que estes livros de divulgação tenham a necessidade, para expressar esta realidade, de usar a linguagem poética. Há a célebre experiência do gato de Schrödinger, em que ele defende que um fenómeno só existe depois de ser observado. Só sabemos se o gato que está na caixa está vivo ou está morto quando a abrimos. Até esse momento há metade de probabilidades de que esteja vivo e metade de que esteja morto. Nós é que construímos de facto a realidade através da observação, nós é que lhe damos sentido. Quando observamos não conseguimos tirar a nossa consciência como quem tira um sobretudo. Nunca saberemos como é o mundo real, e até que ponto ele coincide com aquele que construímos através da observação e com recurso à linguagem. Ao longo da história há muitos exemplos de que essa observação não era correcta. A infância é para mim esse momento de coincidência de nós com o mundo. É o problema do amor: nunca conseguimos alcançar o outro. Damo-nos mais com as pessoas com quem nos escapa sempre alguma coisa. Mas em relação ao jornalismo, quando observamos a nossa galáxia, percebemos que é uma entre milhões, que o nosso sistema está num braço modesto da galáxia e que o nosso planeta se encontra entre biliões de outros. Esta normalidade dá-me uma sensação de imensa paz, porque me permite relativizar-me a mim e aos meus problemas. Aprendi com os grandes tipógrafos, às vezes estava na chefia de redacção cheio de problemas com os títulos e eles diziam–me: “Não se preocupe que amanhã isto é para embrulhar o peixe.” A dimensão do infinitamente grande e do infinitamente pequeno dá-nos a consciência de que tudo é para embrulhar peixe.

Mas isso remete para a questão clássica da filosofia, perante essa espécie de morte de Deus na imensidão do cosmos: porque raio de razão faremos nós o que quer que seja?
A grande dignidade da vida e do jornalismo está em ter a consciência plena de que aquilo acaba a embrulhar peixe, mas fazê-lo o melhor possível em cada momento. Fazer o mais honesto, empenhar-se ao máximo, sabendo que é completamente irrelevante. É essa a grandeza do ser humano.

Mas não há nenhuma forma humana de transcendência?
Não acredito na transcendência, a não ser nessa: a consciência de ter uma pulsão para ir além de nós mesmos. No nosso caso concreto, é fazer o melhor possível aquilo que sabemos que no dia seguinte desaparece. É a nossa forma de transcendência.

[Momento em que o fotógrafo Ricardo Castelo pergunta se é possível marcar fotografias para amanhã, com gatos.]

Vou dizer-lhe uma coisa. Se quiser tirar, eu vou. Costumo dizer que à primeira digo sempre que não, mesmo que queira, e à segunda digo sempre que sim, mesmo que não queira. Tenho o hímen complacente. Estou tão farto de ver fotografias de gatos, é um cliché a meu respeito. Costumo dizer que há dois tipos de fotografias de escritores: ou com mão no queixo ou com livros atrás, e no meu caso é com gatos. Se puder evitar, peço–lhe que o faça.

Há a hipótese de tirarmos uma fotografia de um gato a ler um livro seu?
[Risos.] Eu tenho uma fotografia com um gato do Manuel Resende a ler um livro meu. Tenho-a aí, ele estava a traduzir uma obra minha em francês, o Manuel Resende e não o gato, e o bicho adormeceu em cima dos meus poemas.

Continuando, isso da impotência não há. Eu não consigo deitar as mãos para trás, como se fala no poema do João Cabral Neto. Faço as coisas. É uma frase feita das minhas, daqueles bordões a que a gente se agarra, mas defendo que o mínimo que nos é exigível é o máximo que podemos fazer.

Há quem diga que o jornalismo tende a matar a inteligência. E a arte, não sente isso?
Há bastante gente que diz isso. Também a propósito da infância vou citar-lhe um poema meu: “Um tempo houve em que,/de tão próximo, quase podias ouvir/o silêncio do mundo pulsando/onde tu eras mundo, coisa pulsante.” Está a ver, isto é a minha ideia de infância. “Extinguiu-se esse canto/não na morte/mas na vida excluída/da clarividência da infância/e de tudo o que pulsa,/fins e começos,/e corrompida pela estridência/e pela heterogeneidade”, aqui onde estava “heterogeneidade” eu tinha escrito “jornalismo”. Tinha: “corrompida pelo jornalismo”, mas acabei por não pôr, porque é limitativo. Mas é verdade que um dos limites do jornalismo está na estridência. Mas para um jornalista e um escritor (costumo dizer que é uma roupa que nunca me serve bem e poeta muito menos, jornalista acho que me serve melhor) a matéria-prima é a mesma: a palavra escrita. Estas duas formas de escrita: uma para comunicar e outra para criar realidades, para convocar o mundo, têm muitos pontos de contacto. Uma coisa que eu aprendi no jornalismo é a humildade. Se conhece escritores, sabe que normalmente são tipos que acham que é fundamental aquilo que escrevem. No caso do jornalismo, como sabemos que aquilo que escrevemos no dia seguinte está a embrulhar o peixe, não é assim. No jornalismo aprendi essa humildade fundamental. Tenho de escrever, nas minhas crónicas, 1400 caracteres, o morto à medida do caixão – agora tenho-lhes metido o IVA, como aumentou, escrevo 1420. E meti-lhe o IVA baixo. Depois de escrevermos uma coisa, o coordenador corta e altera o título. O jornalismo é um trabalho colectivo. Isso dá-nos uma grande modéstia. O Luiz Pacheco dizia que daqui a cem anos ninguém se lembra. Qual daqui a cem anos… Mesmo na altura já ninguém se lembra. Os escritores têm muita dificuldade em aceitar que tudo acaba por se esquecer. Tudo tende para o esquecimento. Mas há mais relações, o jornalista aprende com o escritor o respeito pelas palavras, sabendo que há palavras que se dão com as outras, e outras não. Não calcula o tempo que demoro a escrever aquela merda com 1400 caracteres. Leio aquilo tantas vezes… Volto atrás e vou para a frente. Só a trabalheira de arranjar assunto. Eu espontaneamente só tenho opinião uma vez por ano, agora tenho de ter todos os dias porque ganho a vida assim. Nunca leio o que escrevi no dia seguinte, porque se o faço fico completamente frustrado.

Nas suas crónicas tem uma certa desconfiança em relação às homenagens e afirma que o inferno dos poetas é acabar nas lapelas dos políticos.
Sabe uma coisa, agora que tive o Prémio Camões tenho homenagens em todo o país. E eu vou porque as pessoas são simpáticas. Se me estendem a mão, estendo sempre a mão. Não gosto de humilhar ninguém. Mais depressa lhe dou uma chapada que a deixo pendurada, compreende? Se desse uma chapada ficava cansado para o resto dos dias. Por isso é que em entrevistas já tenho dito que apertei a mão a muitos canalhas e continuarei a apertar. Ao contrário do Borges, que diz “compreendo o beijo ao leproso, mas não aceito o aperto de mão ao canalha”. De qualquer maneira são pessoas simpáticas. Não posso deixar de fazer isso quando as pessoas me convidam. As explicações que eu dou para tentar não ir por causa das crónicas, da diálise e da falta de tempo, tudo verdade, mas se as pessoas insistem eu vou. O dinheiro do Prémio Camões não o dava a ninguém, mas o prémio partilhava-o com toda a gente, com quem quiser. Entrego já a glória daquela merda.
 
Gosta do secretário de Estado da Cultura?

Sou amigo dele, mas não acho que ele esteja a fazer um grande trabalho. Não gostei nada da história do Centro Cultural de Belém. Tive uma crónica escrita sobre isso, mas depois não a publiquei.

Mas o Graça Moura é um bom poeta.
Tenho dito isso. Costumo dizer-lhe que só por causa dos poemas dele perdoo-lhe tudo, até ser a favor da pena de morte. A propósito da sua pergunta inicial sobre os políticos, o Jardim sempre que cá vinha telefonava-me e queria almoçar comigo. Eu fiz a tropa com ele, sabe? Até dormíamos no mesmo beliche. A minha mãe costumava dizer que é na guerra e no jogo que se conhecem os homens…

E tem boa impressão dele?
Até fico ofendido com essa pergunta [risos]. Tenho a pior possível. Vou-lhe contar um episódio que revela o comportamento daquele tipo, é o comportamento dos cobardes. Na guerra estávamos na Acção Psicológica. Éramos dez tipos e eram quase todos do piorio, só havia três tipos que não eram fachos. Nós dez contestámos uma prova física que contava para a classificação e combinámos chegar todos ao mesmo tempo. Então fizemos a corrida em passo de cruzeiro, e 100 metros antes da meta o Jardim arranca a grande velocidade e rompe o acordo, o filho da puta, para ver se ganhava uns pontos extra. O azar dele é que arrancou a 100 metros e nós éramos todos mais ágeis que ele, está a ver a figura dele?, e ultrapassámo-lo todos e ele ficou em último lugar. Mas aquilo foi um acto de traição em relação a uma coisa que tínhamos acordado todos. Mas apesar de já lhe ter chamado Bokassa ele nunca me pôs um processo e sempre que vinha cá telefonava-me para almoçar comigo. Os políticos tratam-me sempre bem. São umas putas velhas. 

Mas há alguma explicação do amor dos políticos pela poesia?
Conhece “A Carta a Um Jovem Poeta”? É um diálogo entre Rilke e um jovem poeta que lhe tinha entregue uns poemas. O Rilke simpaticamente disse que tinha gostado de alguns, a que o jovem terá aduzido esperançado: “Acha então que devo continuar a escrever?” Tendo Rilke respondido de pronto: “Ó homem, se pode parar de escrever, aproveite.” Eu acho até que é um dever cívico. Defendo a tese de que a poesia devia pagar imposto. Mesmo cair sob a alçada do Código Penal. Isso para evitar que, entre outras coisas, eu tenha de ler aqueles 400 livros [aponta para um molho de livros de um concurso de que é jurado]. Todos com “alma” a rimar com “calma” e “água” a combinar com “mágoa” e coisas do género. Poupava-se papel, árvores e muitas coisas. Só se publicavam livros daqueles que estavam dispostos a correr riscos. Voltando à vaca fria, isto visto, já não digo de Alfa do Centauro mas da Lua, é completamente risível.

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