Elogio da lembrança

 
Fotografia de Anthony Tran



Quando os desesperos nocturnos
pouco a pouco se amontoam em pânicos matinais
lembra.
O tempo em que, depois das aulas,
ias à janela e batias o apagador...
ficava sempre a marca de giz
na parede escura.

Quando aos fins de semana vais de carro ao campo,
a camisa imaculada, o olhar fatigado de vigiar as crianças,
lembra.
As longas caminhadas pelo monte,
o último encontro de futebol, findo o secundário,
a roupa amarrotada debaixo de uma pedra.

Quando já atravessas para o outro lado da rua
para não teres que falar com ninguém,
com pressa de chegar à casa que compraste
(estás a pagá-la todos os meses e um dia, dizem, será tua)
lembra.
O tempo em que ao cruzares com um polícia
dizias: «bom dia, minha senhora».

Lembra o rosto dos ausentes.
E essa palavra lançada ao rio pelo amigo.

Não olhes com sobranceria
o tempo em que à janela procuravas
responder e nunca o conseguias, à pergunta: «o que há entre
a escuridão lá fora e a minha alma aqui?»
Lembra.
Jorge Gomes Miranda






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