Cantar na rua*

*Publicado no Jornal do Centro há exactamente dez anos, em 16 de Março de 2007


1. Na sexta-feira passada, na Antena 1, no programa do Provedor do Ouvinte, foi lida uma carta a “dar nas orelhas” de Ana Sá Lopes. Pelos modos, num programa de debate político, aquela jornalista disse que: «A Câmara de Lisboa não tem dinheiro nem para mandar cantar um cego». Um ouvinte da RDP não gostou. A sua fúria nada teve a ver com a secura dos cofres do município lisboeta (inevitável depois dos anos Santana / Carmona). O ouvinte não gostou foi da parte do “nem para mandar cantar um cego” e fê-lo saber numa prosa violenta.

O problema deve ter ficado resolvido já que, para “não bater mais no ceguinho”, Ana Sá Lopes acabou por pedir desculpa ao reclamante.

Foi pena. Os aforismos populares são “politicamente incorrectos”. Metem “sal” na linguagem. Esse “sal” é bom mesmo que cause “hipertensão” a algumas almas mais sensíveis.




2. Rosa Francelina Dias Martins ficou cega aos 4 anos, começou a pedir aos 9, a vender lotaria aos 21 e a cantar na rua aos 30. No Verão de 1999 foi descoberta por Andrea Heller, produtor de World Music, tendo cantado em toda a Europa e editado um CD chamado “Dona Rosa”. O CD inclui um muito instrutivo texto de Nuno Pacheco sobre a tradição dos “cegos andantes” ou “cegos papelistas” (assim eram conhecidos no século XIX).

No Natal de 2002, Dona Rosa queixou-se dos altifalantes que Santana Lopes semeara nesse ano pela baixa de Lisboa. Dona Rosa ficou cheia de dores de cabeça e de garganta. «Como se não bastasse o frio e o vento, ainda tive de levar com a música concorrente» - desabafou ela ao Expresso.




Como se vê, Ana Sá Lopes não devia ter abjurado a sua ideia. Ela tinha intuído bem. Há bastante tempo que a Câmara de Lisboa não se dá bem com o cantar dos cegos.

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