Traumas *

* Texto publicado no Jornal do Centro há exactamente 10 anos, em 19 de Novembro de 2004


1. Há 30 anos, conheci, em Cinfães, um professor que tinha sido ferido em combate, na Guiné. Em Dezembro de 1973, a sua companhia sofreu ataques quase diários. Naquele ano, ele teve um péssimo Natal, acabou ferido no esterno e no maxilar inferior e foi evacuado para a metrópole, como se dizia na altura.

Era uma pessoa culta e inteligente com quem gostava de dar longos passeios a pé. Num fim de tarde, logo no início de um dos nossos passeios, ao longe, ouviram-se foguetes a anunciar uma festa de Verão. Imediatamente, o meu amigo mudou de comportamento. O barulho dos foguetes fez-lhe mal. As explosões dos foguetes implodiram-lhe na cabeça. Perdeu a calma e a racionalidade. Os seus olhos mostraram medo. Acompanhei-o a casa. Dei-lhe conforto. Para além das feridas no corpo, a guerra tinha-lhe deixado feridas na alma. Não sei como era na altura, mas essas feridas agora têm nome: chamam-se stress pós-traumático.

2.  Há circunstâncias excepcionais que tiram as pessoas do seu “viver habitualmente” e a guerra é uma dessas circunstâncias.

É por isso que a guerra é uma coisa grave.

De que lado há mais heróis na Guerra do Iraque, do lado dos ocupantes americanos ou dos lados dos insurgentes de Bagdad?

Esta pergunta faz mais sentido do que parece. É que esse criar de heróis é também uma guerra: é a guerra pelos imaginários. O fabrico de heróis da Guerra do Iraque, vai ter tanta importância como as operações de limpeza em Fallujah. E, nas narrativas islâmicas, quantas dessas histórias futuras de heróis não serão hagiografias de mártires para semear novos mártires?

Mas a maior parte das vezes, não há heróis. Depois dos combates, fica só a “carne para canhão”, ficam os “soldadinhos de chumbo”, que os generais esqueceram, com feridas no corpo e na alma, como o meu amigo de Cinfães, que não vejo há muito tempo, mas que sei que conseguiu recuperar dos traumas da guerra colonial.

3.  O Los Angeles Times, do último domingo, citou especialistas que calculam que um em cada seis soldados americanos regressados da Guerra do Iraque sofre de stress pós-traumático. São milhares e milhares de pessoas. Aquele jornal da Califórnia, num artigo intitulado “Estas feridas invisíveis cortam fundo”, contou a história dalguns desses homens:


Matt LaBranche, um sargento de 40 anos, carregou uma metralhadora no Iraque durante nove meses. Antes da guerra vivia normalmente com a sua mulher e o seu filho. Depois da missão em Bangor, no Iraque, regressou uma pessoa diferente.


Ameaçou seriamente a vida da mulher (agora ex), pelo que corre o risco de ser condenado a uma pena de prisão num julgamento já marcado para o próximo mês.


Daqui
Por agora, Matt LaBranche passa as noites no sofá dum irmão, onde tenta dormir um dormir químico e cheio de pesadelos. Neles revive permanentemente a morte duma iraquiana nos seus braços depois de a ter baleado a ela e aos filhos. Avariou e só diz obscenidades. Mandou tatuar-se nas costas com uma espada ao longo de toda a coluna vertebral e com a seguinte frase: “Eu vim para vos trazer o inferno”. Diz que se sente morto por dentro.

Por sua vez, o tenente Julian Philip Godrum procura agora a solidão dos cinemas e o bálsamo dos amigos. Evita o tráfego pois o barulho dos carros e o fumo dos motores fazem-no ter flash-backs para a guerra e imagina atiradores em todo o lado, a manterem-no debaixo de mira.

“Treinei-me, era um soldado excelente e de carácter forte. Como pôde a minha cabeça avariar?” – pergunta ele ao repórter do Los Angeles Times, enquanto toma mais uma pílula.

Matt LaBranche e Julian Philip Godrum não são heróis. São traumas para varrer para debaixo do tapete da américa de Bush.

Comentários

  1. “Estas feridas invisíveis cortam fundo”.

    Respeito e memória por quem combateu no Ultramar.

    “Sou finalmente o único fantasma
    da minha vida inteira.”
    Inês Dias, in "Um raio ardende e paredes frias" averno, 2013

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  2. “Estas feridas invisíveis cortam fundo”.

    Respeito e memória por quem combateu no Ultramar.

    “Sou finalmente o único fantasma
    da minha vida inteira.”
    Inês Dias, in "Um raio ardende e paredes frias" averno, 2013

    (em memória do meu querido amigo MJV)

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