canção ao emigrante


Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo


a sombra para além dos dias é a lembrança de ontem e o poder não haver amanhã

levo numa mala coisas simples para voltar e sei exactamente a quem pertencem

levo-as numa de devolver e guardo-as com a mão dos dedos todos para que não esqueça porque vou

sei ainda de cor os passos para casa e só penso no inverso quando me arremesso à frente

tenho de passar daqui para lá sem ir desta para melhor

há partes de mim feitas à mão que não passam na alfândega e maravilhas escondidas que vou ter que declarar

vou para longe para ser visto de relance pelos olhos frios da certeza da parada das tropas

sou o viajante
o camionista
o forasteiro
o astronauta
o emigrante
o país
o sem-abrigo
o que vai agora aprender a falar
o que vai agora aprender a comer
o que vai para a sombra ver melhor
o que não sabe ao que vai
sei o regresso e fujo ao passado entre os dedos juntos

oxalá não se esqueçam de mim
o neto da nau catrineta
o bisneto do Deus nos livre
o marujo à cabra cega

fiz a mala mais pequena que havia com o couro das costas
e tenho dores nelas quando vos aperto nas mãos

fui fazer um país novo e encontrei o que já lá estava
dei um adeus a ver se voltava porque não sabia até já na outra língua
e por isso fiquei mais tempo

espero voltar
espero um dia
espero que baixe à terra um bilhete de avião
espero por ver maior a foto tipo passe-vite que me amarrotou o transparente da carteira

espero por um dia mais novo comigo mais velho a falar mau português com o carinho todo que tiver
João Negreiros




Comentários

  1. Canção ao emigrante clandestino...

    Manu Chao: Clandestino
    http://youtu.be/Y9ix30eyXTY

    "Yo siempre estaré a tu lado".

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