Neste país
Viana do Castelo (1954), fotografia de Jean Dieuzaide |
neste país os doidos terão sempre divertida audiência
se por mais nada porque não é
com compaixão que se enchem casas de saúde
às vezes é preciso reduzir o mundo a um só círculo de escuridão
e o que seria das nossas farmácias sem longas filas para a gota,
emagrecimento, falta de sono, doenças do coração,
peste e no fundo uma morte lenta que se agarra a tudo
é dentro de uma grande farmácia que uma velha juventude
ainda joga à bola, aos matraquilhos, ao pião
enquanto as mães hesitam entre prozac e xanax
que meninos de bibe aos trinta anos
ligam para a mãe para apurar o grau de concentração
necessário para que o óleo de fígado de bacalhau
garanta um desenvolvimento são
na educação do português
de geração em geração é este o único garante vital
de que este país crescerá forte e sadio
aqui e agora
não acredito que o país do puro pássaro seja possível
ainda que este ano a operação de ouvir o hino nacional
em estádios por toda a frança
chegue para encher de vontade a quase totalidade
de uma classe média
numa considerável porção ainda colonial e racista
que povoa os cafés de ruas
aonde o meu fantasma há-de voltar
e não será para viver todos os momentos
que não viveu junto do mar
nem tão só para repetir a carta aos meus filhos
sobre os fuzilamentos de goya porque essa seria
uma esperança que lhe sairia demasiado cara
como é que eu posso saber
no meio deste inferno periférico
hipotecado a setenta anos
democraticamente manso
e de fraca consciência histórica
que mundo será o vosso meus filhos
nascida de pais portugueses em portugal
os meus filhos nascerão talvez ingleses
liberais de esquerda, leitores de platão,
perfeitamente bilingues, cidadãos do mundo
e até nisso serão mais portugueses do que eu
e é possível que este seja o acto de demagogia que me reste
uma demagogia pobre e zangada tão à portuguesa
que não mata mas mói e portanto pode e deve ser
abraçada em quartos cor-de-rosa por um exército
de meninas vestidas com camisolas do benfica
não tanto porque lhes interesse o futebol mas para
não matar o diálogo intelectual com o namorado
educadas quase só na arte de habitar
a solidão de uma cozinha
onde homem que é homem não entra
e abençoadas pelo fado católico que ainda se escoa
dos rádios dos melhores taxistas da nação
e um poeta com menos discernimento
neste país tão europeu que se enche
de painéis de publicidade em inglês
como selvas se enchem de vegetação
e certos quadros da renascença italiana
se enchem de cabeças cortadas
alinharia aqui os três Fs e concluiria
que não tem sido fácil calcular a distância certa
que nos pode salvar do orgulho de estar sós
sem grande artifício há no coração desta
bela cidade uma enorme praça de touros
a ternura desarmante e sem dentes
de todos os empregados de mesa
um falo gigante num dos parques principais
a única luz que será cuidadosamente preservada
porque esta é a que chega para combater a dor, a tristeza
e a ruína esfomeada de tudo o que cresce ou não cresce à volta
e o poeta que esta noite fechar a sua janela sobre o tejo
sabe que só é preciso fechar os olhos a metade
ou mesmo olhar para tudo com um olho a menos
para poder continuar a amar em paz o resto
Tatiana Faia
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