Blues dos refugiados
Fotografia de Sebastião Salgado
Digamos que esta cidade tem cerca de dez milhões,
Há os que vivem em buracos, há os que vivem em mansões,
Mas não há lugar para nós, amor, não há lugar para nós.
Já tivemos um país, que nos parecia bem,
Procurem-no no Atlas, que ainda lá vem:
Já não podemos voltar, amor, já não podemos voltar.
Cresce um velho teixo junto ao largo da igreja,
E todas as Primaveras de novo floreja,
Mas os velhos passaportes não, amor, os velhos passaportes não.
O cônsul deu um murro na mesa, impaciente:
«Não têm passaporte, estão mortos oficialmente.»
mas continuamos vivos, amor, continuamos vivos.
Fui a uma comissão, mandaram-me esperar sentado;
Que voltasse para o ano, disseram num tom educado.
Mas para onde iremos hoje, amor, para onde iremos hoje?
Fui a um comício em que o orador, de pé, dizia:
«Se os deixarmos entrar, roubam-nos o pão de cada dia.»
Falava de nós os dois, amor, falava de nós os dois.
Pensei ouvir trovões no céu a tremer;
Era Hitler na Europa, dizendo: «Devem morrer.»
Estava a pensar em nós, amor, estava a pensar me nós.
Vi um cão-de-água preso à lapela de um fato,
E uma porta a abrir-se para que entrasse um gato:
Mas não eram judeus alemães, amor, não eram judeus alemães.
Fui até ao porto, pus-me a olhar para a corrente,
Na água vi os peixes a nadar livremente:
Mesmo a dez pés de mim, amor, mesmo a dez pés de mim.
Andei pela floresta, vi os pássaros empoleirados,
Não tinham políticos e piavam os seus trinados,
Não eram a raça humana, amor, não eram a raça humana.
Sonhei que via um prédio com um milhar de andares,
E milhares de janelas, portas aos milhares,
E nenhuma era nossa, amor, nenhuma era nossa.
Cheguei a uma campina com a neve tombando,
Vi dez mil soldados de lá para cá marchando;
procurando-nos aos dois, amor, procurando-nos aos dois.
W. H. Auden
Trad.: Margarida Vale de Gato
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