Lavrar o mar*

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1. Como nos explicou Karl Popper, a linguagem é “a única ferramenta exossomática cujo uso é inato”. Exossomática porque, embora a maior parte da produção de palavras e de sentido aconteça dentro de nós (pensamentos, sonhos, monólogos interiores), uma outra parte sai mesmo do nosso corpo e espera encontrar pelo menos um receptor (é o caso deste texto que deseja encontrar leitores). 

Esmiuçado este ponto do “dentro” e do “fora”, continuemos com a concepção popperiana da linguagem: “o passo que tornou a linguagem verdadeiramente descritiva e verdadeiramente humana” foi quando ela começou a “ser usada para mentiras, para contar histórias”. 

O filósofo austríaco tem razão: quem diz histórias diz metáforas, nós somos máquinas de produzir narrativas e metáforas. Como diz George Steiner, em A poesia do pensamento, “a «descoberta» da metáfora” incendiou “o pensamento abstracto”, pôs-nos a “conceber e examinar outros mundos, construir possibilidades lógicas e narrativas para além de quaisquer imposições de ordem empírica”. A “língua”, diz Steiner, está “saturada de metáforas”.

2. No dia 9 de novembro de 1830, um mês e uma semana antes de morrer, Simón Bolívar, já muito enfraquecido pela tuberculose e desiludido com o rumo da América Latina que libertara do colonialismo espanhol, escreveu o seguinte numa carta ao seu velho amigo general Juan José Flores: “Governei durante vinte anos e retirei apenas estas conclusões seguras: (1) a América é ingovernável para nós; (2) aqueles que servem a revolução lavram o mar”. A carta prossegue no mesmo tom pessimista.

A primeira vez que li «lavrar o mar» foi em Steiner e tinha um sentido positivo: pescadores a «lavrar o mar» para, acrescento eu, «engravidar as redes». Já para o desesperado Bolívar, «lavrar o mar» da América Latina é um negrume. E ele não podia adivinhar o que, dois séculos depois e invocando o seu nome, os chavistas iam fazer à sua amada Venezuela.

3. As 30 excelentes canções da playlist com que Pedro Nuno Santos celebrou o Dia Europeu da Música, em 21 de Junho, mostram que ele prefere a alegria da polifonia à monotonia da monofonia. Por conseguinte, não é para levar a sério aquele apelo do líder do PS a que o seu partido fale “a uma só voz”.

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