She’s becoming a lady of a certain age
Fotografia de Eikoh Hosoe |
Recomeça se puderes…
em rigor conselho ou aviso de médico,
e tantas as coisas que, percebo, admito,
não quero, não posso, não sou, ainda sou,
não sou a cor, sou os químicos, a química,
da tinta das canetas com que escrevo,
da tinta com que escondo os brancos cabelos,
sou o carvão do lápis,
sou o fio de cabelo que atravessa a agulha,
sou esta boca que ainda te debulha,
sou três dioptrias,
três dentes chumbados,
três amores amados,
se eu soubesse não tinha casado,
sou um triângulo, sou a geometria,
seno, co-seno e tangente, sou trigonometria,
pudesse eu ser a tua sede, a tua alegria,
sou uma janela sem gelosia,
sou vazia, uma garrafa de plástico,
sou todos os plásticos no mar,
nas entranhas de todos os peixes,
sou com folhas secas a solidão de uma piscina,
se eu te der a mão nada mas não me deixes,
sou o trânsito em hora de ponta,
sou um animal perdido no meio do trânsito,
sou poluição,
sou vento de incêndio,
sou uma inundação, uma decepção,
sou o candeeiro de rua
onde urinam todos os cães da rua,
sou o teu cão no dia em que morreu,
sou o miolo do pão, o caroço da cereja,
na Índia monção, na América furacão
e só de poemas tenho inveja,
sou o barulho do apito do amolador de tesouras,
sou das nuvens uma arcaica lavoura,
sou da lavoura uma vinha velha e vindimada,
sou os pedais da bicicleta do carteiro,
sou o cheiro da relva acabada de cortar,
sou o cheiro a pão acabado de cozer,
sou os pontos das tuas cicatrizes,
sou das meretrizes a tua meretriz
e ainda não comecei a dizer-te o que sou,
sou tudo o que faço,
sou o que desfaço,
sou a faca de aço do rapaz do talho,
sou um velho carvalho, o chão do teu soalho,
sou os teus pés quando descalços
e não me vendo nem te vendo a retalho,
sou o avental ensanguentado onde o rapaz do talho limpa as mãos,
sou Verónica, Madalena, Pavia e Maria,
respeitinho que já tenho idade para ser tua tia
mas com esses sonhos tão grandes nos olhos ainda te fazia.
Raquel Serejo Martins
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