Estou intoxicado
Fotografia de Christian Coigny |
Estou intoxicado
tenho palavras que não chegam a palavras
tenho camisas e cicatrizes que não me servem
tenho relógios que não chegam a tempo
tenho corpos que não chegam a frontais
tenho ruas milhares de ruas e não tenho roupa para isso
Tenho barba onde não sou delicado
Em suma
espera-me um comboio sinistro
cujo bilhete é uma locomotiva de braços
isto eu posso dizer
calculei mal o salto
eu estava armado e podia tornar-me perigoso
correram avisos em todas as línguas
eu tinha a força de 40.000 escravos
e erguia pirâmides para o meu egipto interior
onde anos mais tarde ninguém saberia
o que dizer
Eu estou intoxicado
é preciso que isto entre no meu currículo
de uma forma soberana
e para isso basta que percebam que
eu nasci para inventar o avião
eu nasci para regar as plantas do meu susto
eu nasci para instalar nervos no vosso tédio
e através deles descarregar a minha raiva
cavalo selvagem magro e descontrolado
apaixonando-se pela própria crina
Eu nasci para a memória de um acontecimento
Narrar-vos o meu crescimento
não seria a construção de uma paisagem
mas a ficção de um sobressalto
eu próprio me encontro longe
o meu coração é um epicentro
e eu apenas as réplicas de algo que se renova no escuro
que se aproxima como a urgência de um crime
na noite mais desesperada
Do outro lado da linha
na noite mais desesperada
a confissão de que se está pobre
na noite mais desesperada
do outro lado da linha
a confissão
estendo a mão e peço-me a mim mesmo
como a esmola possível
a esmola de um dia
de uma tarde
de um minuto sem tímpanos
sim o sino da surdez
e as cordas soltas na garganta
carrilhão da minha loucura
Estou intoxicado
tragam-me uma seringa ou o acto de escrever
o acto de reparar o acto de rasgar
o acto de roer as unhas ao precipício
o acto de me equilibrar o acto de atentar
o acto de sugerir o acto de concretizar uma ameaça
o acto de desmontar o telefone o acto de desmontar a voz
o acto de reclamar-se herdeiro do primeiro poema terrestre
o poema que não falava de outros poemas
o poema-pedra a embater na realidade
o poema estilhaçado na paisagem estilhaçada
( o acto de fazer explodir uma granada na boca)
Concentrei-me ao máximo
para não envenenar o momento
mas a concentração foi - ironia - o meu veneno
senti os pulmões pesarem como leques de mármore
senti que não iria alcançar a lucidez
senti a língua aos trambolhões pelo corpo abaixo
senti a lava e o gelo chegarem a um acordo
leopardo em transe diante do espelho
e eu mexi-me
Para quê o movimento?
é propício o movimento? e o desejo é propício?
é propício saber? é propício não saber?
para quê aqui ou ali? medidas e ajustes?
para quê?
Eu dou-vos as definições
a ignorância é um recém-nascido a morrer de frio
a sorte é uma moeda fora de circulação
o espanto é a mesma coisa que aparecer
a guerra é um método de procriar
o medo é um eixo sem rotação
a ciência é ler várias vezes a primeira página
o rumor é a verdade a piscar-nos o olho
o paradoxo é o paradoxo
o suicídio é um fósforo de fumo
a espera é um degrau abaixo
a idade é uma sala para morrer
o fim da história é o princípio de mim e de ti
a magia é a escala magirus do incendiário
a intoxicação é vir aqui vomitar sangue
sobre o vosso vestido nupcial
A cerimónia não existe
não há protocolo
a cerimónia é exactamente não haver protocolo
eu descobri o truque
eu escondi-me atrás do prestidigitador
e quando o pano subiu
eu era o homem mais velho da terra
e ria
ria de todas as crianças
de todos os pais pela mão
de todos os cães tosquiados
de todos os nós de gravata
Ria com um nó na garganta
e era esse o meu traje de gala
porque este poema sou eu a riscar
e a escrever por cima
com luciferina caligrafia
este poema arde de verso para verso
e não pode ser relido corrigido
repensado conduzido repetido
reprogramado
este poema não pode ser parado à porta
este poema é gasolina e comoção
este poema vai entrar para a história do efémero
este poema já nem existe
este poema não chega a ser um vestígio
este poema ferve e estaca e pisa os dedos
com sola vermelha
Eu não estou vivo
eu estou intoxicado
eu salto da varanda para provar que a gravidade
eu salto
eu exijo
eu manifesto-me no acto de produzir
no acto de emagrecer no acto de defender
eu não estou vivo
eu estou pronto para o que há-de vir
eu sou o acto de me julgar apto
para cada dia do meu século
mas noutra condição
não assim
não de costas
não aos espaços
não por enquanto
não se for possível
não para retratos
não para diários
não para aplausos
Eu sou o acto de sair em silêncio
Vasco Gato
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