Os Verdes Anos #2 - Ilda, a criada de servir

Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, 1963


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 (...) "Passam 26 anos [depois da estreia de Maria Papoila, de Leitão Barros, 1926] e vamos reencontrar a criada de servir na Ilda de Os Verdes Anos, agora no corpo e voz da jovem Isabel Ruth. É já um cinema novo, mas será outra realidade?

Do ponto de vista da intriga, o filme de Paulo Rocha podia resumir-se assim: Júlio vem para Lisboa trabalhar de sapateiro, conhece Ilda, uma criada de servir, e enamora-se. Um equívoco entre os dois deixa-o ciumento. Quando finalmente tudo se esclarece, ele pede-a em casamento. Ela recusa e ele mata-a. E no entanto, não será propriamente isto que o filme nos quer dar a ver...

Como em Maria Papoila, também este é um filme que faz uso da dicotomia campo/cidade e também aqui existe um desconforto com a vida urbana. Pode mesmo dizer-se que o que mata Ilda é a incapacidade de Júlio em compreender a arquitectura de linhas rectas e pontos de fuga de que se vê cercado e que traduz o quão estrangeira é aquela vida urbana tão aberta a possibilidades. Ou talvez Júlio a mate simplesmente por inveja da naturalidade com que Ilda se adapta à cidade. Já não há nada do heróico “povinho” em Os Verdes Anos. Agora a oposição campo/cidade serve o retrato de um casal desencontrado, que é também o mal estar de um país. Mas e a representação da criada?

Ainda o avental, o cabelo apanhado. Agora passa com sapatos da patroa na mão, logo depois volta com a cesta a caminho do mercado, mais tarde entra com o tabuleiro e o Sarudon para a dor de cabeça da “sua senhora”. Sai nas folgas para passeios com o namorado e para dançar. Também Ilda migrou para a cidade (“Aquele pessoal é todo da minha terra! Vieram acompanhar um primo meu que foi hoje para a pesca do bacalhau”). Também ela ficou órfã e aos cuidados de uma madrinha. Uma criada é uma criada é uma criada. E uma criada lisboeta, com certeza! 

Se, em 1938, Maria Papoila ia ocupar o seu posto na Lisboa das Avenidas Novas (o entorno do recém construído Instituto Superior Técnico), em 1963, encontramos Ilda ali bem perto, numa das novas Avenidas Novas. Em ambos os filmes, uma Lisboa a estrear que coloca a criada no espaço da arquitectura moderna, habitado por uma certa burguesia. Será este o seu cenário natural?

A criada de servir é uma figura que surge com a classe burguesa, tornando-se parte dela. Já não é parte de um batalhão de criados especializados a servir numa casa nobre ou senhorial, nem muito menos uma aia medieva. O aparecimento desta classe “intermédia” no século XIX, e a sua evolução para um espectro alargado no século XX, foi moldando esta figura feminina da criada até à forma relativamente estável que foi possível observar em Portugal durante o Estado Novo. Se, no século XIX, encontramos sobretudo uma alta burguesia, muito próxima da aristocracia e do seu aparato doméstico (lá estavam a criada de dentro, a cozinheira e a lavadeira), vemos depois esta classe evoluir e declinar-se nas média e pequena burguesia, muito mais modestas, mas que mantiveram a criada como símbolo de condição e estatuto. Para isso terá contribuído a facilidade em arranjar e manter uma serviçal a muito baixo custo num país com as características sócio-económicas do Portugal de então."


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"De volta a Os Verdes Anos, detenhamo-nos agora na lealdade da criada à patroa. Ilda já não será uma daquelas criadas (que conhecemos ou de que ouvimos contar) que ficavam uma vida com a mesma família — até porque ouvimos-lhe os planos de um futuro negócio de costura — mas há nela uma lealdade à “sua senhora” que traduz uma forma de afectividade comum nesse mundo de quartos dos fundos e portas de serviço. A dada altura, Ilda conta a Júlio que presenciou a infidelidade do patrão com a prima da patroa, com quem nunca “engraçou”, ao contrário da “sua senhora”, de quem gostou desde logo. 

As criadas entravam nas casas muito novas e, muitas vezes, pouco mais velhas do que os filhos ou netos dos patrões, e iam ficando, ou eram “herdadas” por alguma “menina” que se tornava “senhora” casada. 

Havia muitas vezes uma afectividade recíproca, forjada na convivência e no conhecimento de hábitos, em tudo similar a laços familiares. Estas seriam as histórias felizes, em que tanto a “senhora” como a criada diriam que tinham tido “sorte”. A sorte da criada em não ser maltratada ou abusada, a sorte da patroa em não ser roubada ou mal servida. Havia boas e más criadas, boas e más patroas. Era assim na vida real, mas ao cinema português interessou mais a “boa criada” e isto é tanto mais curioso se atentarmos a que a “criada má” teria uma linhagem mais óbvia na nossa ficção."


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"Não tivemos uma Céléstine em versão Paulette Goddard do Diary of a Chambermaid (1946) que o Renoir foi fazer à América, nem a sua reincarnação na Jeanne Moreau do Le Journal d’Une Femme de Chambre (1964) que Buñuel já estaria a fazer em França. (Mas também não tínhamos tido o libelo em forma de diário de uma criada escrito por Octave Mirbeau em 1900, e que lhes serviu de mote.) 

De resto, a literatura portuguesa da época poderá conter versões anónimas e difusas de criadas em cenas domésticas, festivas, ou até de iniciação sexual de protagonistas, mas não abundam criadas que sejam verdadeiras personagens e muito menos protagonistas. A Guida de Terra Fria de Ferreira de Castro (1934) e a Léah da novela homónima de José Rodrigues Miguéis (1958) serão as excepções (e, curiosamente, foram alvo de adaptações ao cinema posteriores a 1974). Seria talvez no teatro português que as criadas habitavam enquanto personagens secundárias recorrentes e típicas de um género. E particularmente no teatro popular de que muitos destes filmes são adaptações e que modelou as comédias cinematográficas dos anos 40 e 50. Um teatro que não fez História, mas que terá alimentado o imaginário da época."


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"Assim, entre a Maria Papoila e a Ilda, o cinema português deixa-nos um retrato discreto e adocicado da criadita, o que não o torna necessariamente falso...

Com a Ilda d’Os Verdes Anos nasce outro cinema, que transforma a figura da criada num significante diferente. Mas primeiro, a morte. Porque é preciso ver morrer uma criada para que o cinema conheça outro olhar.

A morte de Ilda não se faz pela porta de serviço, mas pela porta da frente. Júlio apresenta-se na entrada social e é até a patroa da namorada quem lhe vem abrir a porta. Depois vem Ilda e a patroa retira-se, mas fica à escuta. O acto (a facada) dá-se fora de campo. Não o vemos nós, nem a patroa. Quando chegamos a Ilda, já ela está no chão, ensanguentada. Olha para a patroa e em jeito de desculpa diz: “Ai, minha senhora...”. Ilda morre como uma criada, com recato e sem ofensa, sempre atenta à “sua senhora”. Mas morre à entrada da casa, num espaço que não lhe é destinado senão para atender ordens e limpar. Uma coisa é levar o namorado lá a casa quando os patrões não estão, outra muito diferente é morrer ali, fora do seu lugar. 

É então um olhar de outra ordem que surge com o homicídio de Ilda e que coincide com a nova vaga do cinema português. A criada continuará a aparecer ainda na sua forma antiga em filmes como Uma Hora de Amor de Augusto Fraga (1964), onde surge a segurar um telefone branco enquanto espera que a patroa (Madalena Iglésias) acabe de cantar, ou em Pão, Amor e... Totobola de Henrique Campos (1964), na forma de Fernanda Borsatti. O que vai desaparecer é esta visão da criada que (com mais ou menos drama) é parte inofensiva e inquestionada da burguesia. E isto sucede porque o cinema se começa a dirigir à burguesia de outra maneira: já não lhe quer agradar, quer questioná-la." (...)

De Papoila a Elvira, a Criada no Cinema Português, 

ensaio de Rita Palma, in Argumento #168 (Março'2021),

 Boletim do Cine Clube de Viseu








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