Os cães e os poetas*

* Publicado hoje no Jornal do Centro


1. Paterson, o último filme de Jim Jarmusch, é um mergulho num mundo sem mal, é uma lavagem à alma. Hollywood, se for inteligente, vai encher esta obra-prima de óscares, para se purgar dos escândalos em que está atolada.

O actor Adam Driver interpreta um driver de autocarro urbano que pendula os seus pacatos dias na rotina casa-trabalho, dias a seguir a dias, iguais, plácidos, sem queixas nem empolgamentos. Nada perturba a serenidade de Paterson, nem uma avaria no seu autocarro, nem o fragor dos vários projectos da sua bela mulher que ele incentiva e apoia sempre sem hesitação.

E porque é a partir das rotinas que se fazem as grandes viagens interiores, Paterson vai manuscrevendo minuciosos e belos poemas num caderninho.

Até que o seu cão que ele passeia todos os dias...


2. O poeta sérvio-americano Charles Simic teve um início de vida muito difícil. Num texto intitulado “Poetas e dinheiro”, Simic conta que, em meados dos anos de 1970, os seus poemas começaram a ser referenciados e reverenciados nos circuitos literários mas nada ou quase nada recebia deles. Recém-casado e com uma filha bebé, vivia do seu “miserável” salário de professor, pelo que, quando recebeu uma encomenda de uma revista artística que se propunha pagar-lhe seiscentos dólares por um punhado de poemas, foi uma felicidade. Há quarenta anos era muito dinheiro.

Charles Simic não tinha nada em stock. Nos dias seguintes, concentrou-se no labor da escrita enquanto, nos intervalos, ia discutindo com a mulher a melhor maneira de gastar aquele balúrdio.

Passou-se uma semana nesta rotina até que, numa “luminosa manhã de sol”, o poeta sentou-se à secretária, pôs-se a ler o que tinha escrito e percebeu que aquilo era “totalmente falso”.

Simic podia ter entregue aquele caderno de poemas falhados ao seu cão para ele estraçalhar. Mas não. Foi mesmo ele que “rasgou os poemas rápida e embaraçadamente”.

A seguir, pôs a trela no cão e foi dar um grande passeio.

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